O condomínio edilício, como reiteradas vezes exposto em publicações do blog, é composto por áreas comuns e áreas privativas. Ocorre que, a despeito de a regra geral ser o uso comunitário das áreas comuns e o uso exclusivo das áreas privativas, é bastante recorrente na prática em tais estruturas imobiliárias que determinadas áreas comuns acabem sendo objeto de utilização exclusiva por algum(ns) condômino(s), o que, em tese, violaria a premissa básica da comunhão utilitária de tais áreas.
Nessa conjuntura, é perfeitamente possível que esse exclusivo não se dê apenas esporadicamente ou até por tempo reduzido. Há diversos casos em que referida utilização com exclusividade por condômino concretiza-se de modo inconteste e por prazo extenso; ou seja, o uso exclusivo por 5, 10, 15 anos, sem qualquer obstáculo imposto por demais condôminos.
Com base nisso, o grande questionamento prático que surge se refere às consequências jurídicas de tal uso exclusivo: há a possibilidade de o condômino adquirir a titularidade de tal área mediante usucapião? Em caso negativo, haveria algum instrumento alternativo para proteger a posse exclusiva decorrente da inércia dos demais condôminos e o comportamento reiterado do usuário de tais seções do imóvel comum?
EXEMPLO ILUSTRATIVO DE USO EXCLUSIVO DE ÁREA COMUM
Imagine-se, por exemplo, que determinado condomínio edilício possui uma unidade imobiliária situada no térreo do condomínio, adjacente às vagas de garagem. No projeto original, determinada seção do térreo do condomínio havia sido concebida como trecho para manobra de veículos ou até para embarque e desembarque rápido, definida, portanto, como área comum.
Entretanto, com o passar do tempo, como os condôminos ajustaram a redistribuição dos veículos nas vagas do estacionamento e se habituaram a manobrar o veículo sem a necessidade daquele trecho, esta área ficou sem uso específico. Por conta disso, o proprietário da unidade térrea começou a utilizá-la como depósito de bens pessoais, visto que era uma área coberta e que, a princípio, não geraria qualquer obstáculo à circulação dos demais condôminos, a pé ou na condução de seus veículos.
Essa situação se estendeu por vários anos, sem qualquer objeção dos demais condôminos, tendo havido, inclusive, eleições de diferentes síndicos ao longo do tempo, os quais, em comum, sempre deixaram a situação remanescer nas mesmas condições. O condômino da unidade térrea, em virtude disso, passou a tratar referida área como sua, arcando sozinho com as despesas de conservação e promovendo melhorias paulatinas.
A celeuma restou configurada em decorrência da oposição criada por novos adquirentes de unidades, os quais, ao tomarem conhecimento de aquela dada área não era, registralmente, adstrita à unidade térrea, resolveram questionar o uso exclusivo por este condômino. Em defesa, este passou a sustentar que, por conta do tempo de utilização exclusiva, percebendo-se como efetivo dono daquela seção espacial do condomínio, teria assumido a condição jurídica de dono, mediante usucapião (prescrição aquisitiva)1.
Como o Direito Positivo, doutrina e jurisprudência interpretam essa questão? Quem possui razão: os novos adquirentes ou o condômino titular da unidade térrea que utilizou a área por anos com exclusividade e sem oposição?
TRATAMENTO DADO PELO CÓDIGO CIVIL E PELA DOUTRINA AO USO EXCLUSIVO DE ÁREAS COMUNS
Primeiramente, convém mencionar como o tema da posse exercida sobre as áreas comuns é tratado pelo Código Civil. O tópico é abordado, de modo indireto, pelo § 2º do art. 1.331 e pelo art. 1.335, inciso II, da legislação material. O § 2º do art. 1.331 do CC é claro ao enumerar exemplificativamente as partes comuns do condomínio edilício (solo, estrutura, telhado, calefação etc.), estabelecendo que serão usados “em comum pelos condomínios, não podendo ser alienados separadamente ou divididos”2.
Em complementação, ao elencar os direitos dos condôminos, o inciso II do art. 1.335 do CC afirma configurar sua prerrogativa o uso das partes comuns em conformidade com a sua destinação, “contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores”3.
Dessas previsões, é possível extrair que, por força de lei, o ponto de partida será compreender o uso exclusivo de áreas comuns por determinado condômino como violador de dispositivo expresso de lei. Justamente por conta disso, a doutrina sustenta que, caso referida conjuntura se concretize, o uso exclusivo não gerará posse ad usucapionem (posse com aptidão a gerar prescrição aquisitiva). Isto é, haverá a presunção de que “os atos de ocupação decorrem de mera tolerância dos demais condôminos, gerando somente detenção (art. 1.208 do Código Civil).” 4
Arnaldo Rizzardo é, inclusive, mais categórico, ao aduzir que a usucapião sobre área comum, caso acolhida, induziria a descaracterização da própria noção de condomínio edilício. Isto é, segundo o autor, não “será o fato da ausência de participação no uso que importará em reconhecimento do domínio”5, concluindo-se que, ainda que haja utilização exclusiva, esta não terá condições de gerar prescrição aquisitiva.
TRATAMENTO DADO PELA JURISPRUDÊNCIA AO USO EXCLUSIVO DE ÁREAS COMUNS
Em termos jurisprudenciais, por sua vez, o entendimento dos tribunais estaduais é divergente, no que concerne à usucapião de área comum. O Tribunal de Justiça de São Paulo, no julgado da Apelação Cível com revisão nº 396.173-4/8-00 e da Apelação Cível nº 74.501-4, compreendeu, coincidentemente, pela impossibilidade jurídica do pedido de usucapião de área comum, sob o fundamento de que, não obstante a posse seja prolongada temporalmente, será “sempre dotada de precariedade, revogável a qualquer tempo a autorização de uso, pela Massa Condominial.”6
Por seu turno, o TJ/RS adotou entendimento diverso em acórdãos recentes, proferidos em 2020, ao entender, de modo convergente, que o simples fato de determinada seção do condomínio estar definida, em matrícula, como área comum, não impede a usucapião caso haja uso exclusivo e não se trate de área essencial à preservação dessa espécie de estrutura imobiliária. Nesse sentido foram proferidas decisões na Apelação Cível nº 700834282197, pela 17ª Câmara Cível, e na Apelação Cível nº 700838825978, da 19ª Câmara Cível.
Tomando-se por parâmetro a ausência de entendimento consolidado acerca do cabimento ou não de usucapião de área comum, haveria, ainda, opção alternativa a tutelar a situação jurídica do condômino que utilizar seção territorial do condomínio durante anos, sem qualquer oposição dos demais condôminos?
Jurisprudência e doutrina caminham em sentido convergente, para o fim de reconhecer o cabimento de uma via alternativa, a acobertar as pretensões de referido condômino, com esteio na boa-fé objetiva e, mais especificamente, mediante a adoção do instituto da supressio.
DA SUPRESSIO COMO ALTERNATIVA PARA PROTEÇÃO JURÍDICA DO CONDÔMINO USUÁRIO EXCLUSIVO DE ÁREA COMUM
Para além das discussões acerca da usucapião sobre áreas comuns em condomínios edilícios, doutrina e jurisprudência albergam a possibilidade de, no campo obrigacional e de direito pessoal, recorrer à aplicação da figura da supressio, com evidente lastro na boa-fé objetiva, para prestigiar a situação consolidada.
Em síntese, a supressio consiste na aquisição do direito de “manter uma situação que se consolidou, em evidente expressão de desistência de qualquer oposição, e inclusive de mudar aquilo que vinha constando nas manifestações escritas”9. Trata-se, portanto, de proteger a pessoa que age de boa-fé em determinado sentido e, a um só tempo, “sancionar” aquele que não se insurge e que, com isso, gera no primeiro a legítima expectativa de que não criará embaraços ao comportamento por ele adotado.
Com base nessa estrutura, a supressio é acompanhada do seu “verso da moeda”: a surrectio, a qual nada mais é do que a perda de determinado direito contraposto à aquisição do direito por aquele beneficiado pela supressio. Contextualizando-se essas importantes figuras parcelares da boa-fé objetiva, pode-se concluir que o condômino que usa certa área com exclusividade é beneficiário da supressio, ao passo que os condôminos que adotam postura inerte e não se opõem ao uso exclusivo ao longo de anos são, por seu turno, atingidos pela surrectio.
A adoção dessa teoria no âmbito condominial goza de acolhimento jurisprudencial, tal como percebido no julgamento do Recurso Especial nº 1.096.639/DF, julgado pela 3ª Turma. No caso concreto, um condomínio – em que pese tivesse finalidade exclusivamente comercial descrita em sua convenção – admitiu, ao longo dos anos, que fosse dada destinação mista a suas unidades. Por conta da insurgência tardia manifestada por alguns condôminos, decidiu o STJ pela prevalência do estado real de coisas sobre estruturas meramente formais, havendo de se desconsiderar, no tocante, uma “convenção condominial que jamais foi observada na prática e que se encontra completamente desconexa da realidade vivenciada no condomínio”10. Isto é, mediante a aplicação da supressio, a situação jurídica consolidada com o tempo há de ser salvaguardada, não admitindo modificações tardias.
Outros acórdãos do STJ que merecem destaque são o Recurso Especial nº 214.680/SP11, o voto do Ministro Ruy Rosado de Aguiar no Recurso Especial nº 207.509/SP12, bem como a explanação acerca do conceito de supressio trazida no bojo do julgamento do Recurso Especial nº 953.389/SP13.
Sendo assim, nesta publicação conclui-se que, não obstante haja divergência jurisprudencial quanto à (im)possibilidade de usucapião de área comum, o condômino usuário poderá ser tutelado juridicamente ao lançar mão da figura da supressio, que ostenta a capacidade de legitimar o estado de coisas qualificado pelo tempo, para o fim de assegurar a preservação do uso e do direito pessoal adquirido pelo condômino que tiver usado e mantido aquela área com exclusividade.
Considerando a extrema complexidade do tema, mostra-se instrumental que síndicos e condôminos procurem obter assessoria jurídica especializada, visando a adotar o comportamento mais adequado possível, à luz das particularidades do caso concreto. O consultivo imobiliário traz consigo importante incremento na gestão condominial, ao esclarecer direitos e obrigações de modo antecipado, acautelando moradores e gestores no que toca às potenciais condutas e consequências prático-jurídicas delas advindas.
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*Rafael Duarte é Advogado, responsável pelo setor de Direito Imobiliário do escritório Caputo Assessoria Jurídica; Pós-graduado em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul; Pós-graduado em Direito Negocial Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito; Pós-Graduado Direito Imobiliário pela Faculdade Legale/SP; Pós-graduando em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale/SP; Membro da Comissão Direito Imobiliário da OAB/RS; Membro da Comissão de Direito Sucessório do IBDFAM/RS; Atua na área empresarial com ênfase em Startups e empresas do setor imobiliário. www.caputoduarte.com.br
1 “[…] no exame de um lapso prescricional aquisitivo nos termos do descrito no parágrafo do artigo, o juiz deve examinar a utilização do imóvel e a intenção do usucapiente de lá se fazer presente para residir ou realizar obras de caráter produtivo.” (VENOSA, Sílvio de Salvo. O usucapião no novo Código Civil. Migalhas, 2003. Disponível em: https://migalhas.uol.com.br/depeso/923/o-usucapiao-no-novo-codigo-civil. Acesso em: 24 jan. 2021.
2 Código Civil. Art. 1.331. […] § 2º O solo, a estrutura do prédio, o telhado, a rede geral de distribuição de água, esgoto, gás e eletricidade, a calefação e refrigeração centrais, e as demais partes comuns, inclusive o acesso ao logradouro público, são utilizados em comum pelos condôminos, não podendo ser alienados separadamente, ou divididos.
3 Código Civil. Art. 1.335. São direitos do condômino: […] II – usar das partes comuns, conforme a sua destinação, e contanto que não exclua a utilização dos demais compossuidores;
4 PEREIRA, Caio Mário da Silva; atualizadores: Sylvio Capanema de Souza, Melhim Namem Chalhub. Condomínio e incorporações. 13. ed. rev. e atual. – Rio de Janeiro, Forense, 2018. p. 88.
5 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 86.
6 SCAVONE JUNIOR, Luiz Antonio. Direito imobiliário: teoria e prática – 15. ed – Rio de Janeiro: Forense, 2020. p. 2.182.
7 APELAÇÃO CÍVEL. USUCAPIÃO (BENS IMÓVEIS). AÇÃO DE USUCAPIÃO ORDINÁRIO. A posse exercida de modo exclusivo por um dos condôminos, de modo incontestável, autoriza o reconhecimento da prescrição aquisitiva. O fato de haver pretensão aquisitiva originária sobre imóvel edificado em área comum de condomínio edilício, não obsta o ajuizamento da ação de usucapião, desde que na causa de pedir estejam os fatos objeto de prova: lapso de tempo exigido em lei, manteve a posse exclusiva, ininterrupta e sem oposição. É preciso, no caso, chamar à lide todos os proprietários do condomínio, possibilitando o devido contraditório, visto que a unidade foi edificada em área comum e indivisa. À UNANIMIDADE, DERAM PARCIAL PROVIMENTO AO RECURSO PARA DESCONSTITUIR A SENTENÇA. (Apelação Cível, Nº 70083428219, Décima Sétima Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Liege Puricelli Pires, Julgado em: 30-01-2020).
8 USUCAPIÃO EXTRAORDINÁRIA. CONDOMÍNIO. CONSTITUIÇÃO JURÍDICO-FORMAL. INDIVIDUALIZAÇÃO DAS UNIDADES USUCAPIENDAS. AUSÊNCIA. ÁREA COMUM. 1. Não pode subsistir a sentença que, forte no art. 485, inc. IV, do CPC, extinguiu ação de usucapião, em razão da inexistência de constituição jurídico-formal do condomínio edilício, porquanto, no caso, o condomínio possui convenção registrada no Ofício Imobiliário e inscrição no CNPJ. 2. O fato de o imóvel objeto da ação de usucapião consubstanciar área de uso comum do condomínio edilício não obsta, por si só, a aquisição da propriedade. Jurisprudência do STJ. Recurso provido.(Apelação Cível, Nº 70083882597, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Maria Isabel de Azevedo Souza, Julgado em: 23-06-2020).
9 RIZZARDO, Arnaldo. Condomínio edilício e incorporação imobiliária. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 87.
10 STJ, REsp. n. 1.096.639/DF. Relatora: Min.ª Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em 09.12.2008. DJe, 12.02.2009.
11 “Condomínio. Área comum. Prescrição. Boa-fé. Área destinada a corredor, que perdeu sua finalidade com a alteração do projeto e veio a ser ocupada com exclusividade por alguns condôminos, com a concordância dos demais. Consolidada a situação há mais de vinte anos sobre área não indispensável à existência do condomínio, é de ser mantido o statu quo. Aplicação do princípio da boa-fé (supressio). Recurso conhecido e provido.” (STJ, REsp. n. 214.680/SP. Relator: Min. Ruy Rosado de Aguiar. Quarta Turma. DJ, 16.11.1999).
12 “Tenho como admissível a teoria da supressio, segundo a qual o comportamento da parte, que se estende por longo período de tempo ou se repete inúmeras vezes, porque incompatível com o exercício do direito, pode levar a que se reconheça a extinção desse direito, com base na boa-fé objetiva. […]” (REsp n. 207.509/SP. Quarta Turma. Julgado em 27.11.2011, DJU, 18.08.2003)
13 “O instituto da supressio indica a possibilidade de se considerar suprimida uma obrigação contratual, na hipótese em que o não exercício do direito correspondente, pelo credor, gere no devedor a justa expectativa de que esse não exercício se prorrogará no tempo.” (REsp n. 953.389/SP. Relatora: Min.ª Nancy Andrighi. Terceira Turma. Julgado em 23.02.2010, DJe, 15.03.2010).