Por Otávio Ronchi*
Origem: conceito e aplicação
O termo “flip societário” tem se tornado cada vez mais comum no segmento das empresas de tecnologia brasileiras, mas sua origem remonta aos Estados Unidos, onde é conhecido como “Corporate inversion”. Esse é um conceito que se refere ao “processo pelo qual uma empresa transfere sua sede fiscal para outro país com o objetivo de reduzir sua carga tributária” definição dada em 2014 pelo autor Edward D. Kleinbard.1
De maneira simplificada, trata-se de uma estratégia de reorganização societária que tem como objetivo a mudança da sede fiscal da empresa para outro país, visando à redução de impostos e à maximização dos lucros.
O conceito de flip societário surgiu nos EUA na década de 1980, quando empresas norte-americanas começaram a buscar alternativas para reduzir a carga tributária. A estratégia consistia em criar uma nova empresa em um país com menor carga tributária e transferir a propriedade intelectual para essa nova empresa, que passava a ser a controladora da empresa original nos EUA. Com isso, a empresa original passava a pagar royalties para a nova empresa, reduzindo, assim, o lucro tributável nos EUA.
Empresas de tecnologia, como a gigante Apple, utilizam-se de estruturas em países com tributação favorecida, como a Irlanda, mas nem sempre a interpretação do fisco (nesse caso o da União Europeia) é pela legalidade, conforme reportagem da Folha de São Paulo2:
“A empresa americana, que tem a maior capitalização de mercado do mundo, é uma das muitas multinacionais que aproveitam a estrutura fiscal da Irlanda, com sua carga tributária baixa, para evitar pagar impostos em outros lugares. A Comissão Europeia argumentou que a empresa usou a Irlanda como plataforma para evitar bilhões de euros em impostos em outros lugares.”
Atualmente, com a expansão do mercado de tecnologia, o “flip” societário se popularizou também no Brasil, onde empresas de tecnologia passaram a buscar alternativas para reduzir a carga tributária. A estratégia – tal qual utilizado pelas empresas norte-americanas – consiste em transferir a propriedade intelectual da empresa para uma subsidiária em um país com carga tributária menor – como Irlanda ou Luxemburgo, por exemplo – e utilizar essa subsidiária para cobrar royalties pela utilização desta propriedade intelectual. Isso permite que a empresa original no Brasil reduza o lucro tributável e, consequentemente, pague menos impostos.
“Flip” societário como ferramenta no Investimento em Startups: reflexos societários e tributários.
O investimento estrangeiro em startups brasileiras pode ocorrer de diversas formas, como, por exemplo, por meio de investimentos diretos, aquisições, fusões, entre outras. Os investidores estrangeiros podem ser pessoas físicas ou jurídicas que buscam oportunidades de investimentos em empresas com alto potencial de crescimento. Cabe, ainda, ressaltar nesse ponto: “Dados da National Venture Capital Association apontam que os Estados Unidos responderam por 51% do investimento em venture capital do mundo em 2020”3.
Nos Estados Unidos, os veículos de investimento mais utilizados em startups são os fundos de venture capital (VC), que são fundos de investimento especializados em investir em empresas em estágios iniciais de desenvolvimento. Além do acesso a capitais, o mercado internacional oferece acesso a instrumentos de investimento que não existem na regulação brasileira. É o caso do SAFE (Simple Agreement for Future Equity) lançado pela Y Combinator em 2013 como um instrumento para financiamento de projetos early stage4.
Estes fundos buscam empresas com alto potencial de crescimento e retorno financeiro, e podem investir em diversos setores, como tecnologia, saúde, biotecnologia, entre outros.
No Brasil, os veículos de investimento mais utilizados em startups também são os fundos de venture capital, mas o mercado ainda é menos desenvolvido do que nos Estados Unidos. Além disso, outra forma de investimento comum no Brasil é por meio de investidores-anjo, que são pessoas físicas que investem capital próprio em startups em estágios iniciais de desenvolvimento.
Fazer um “flip” societário para receber investimento de uma empresa de fora do Brasil pode trazer algumas vantagens, como acesso a mais recursos financeiros, conhecimento de mercado e networking internacional, além de permitir que a startup expanda suas operações para outros países (processo denominado “internacionalização”). O “flip” societário tem sido cada vez mais aplicado em investimentos em startups, especialmente em rodadas de investimento em que os investidores estrangeiros exigem que a empresa seja estruturada em um país com carga tributária menor ou submetida a alguma jurisdição tida como mais previsível ou com que seu suporte jurídico está mais familiarizado.
Em casos como esse, a empresa pode optar por criar uma subsidiária em um país com menor carga tributária e transferir a propriedade intelectual para essa subsidiária.
No entanto, é importante destacar que essa modalidade pode ter reflexos tributários significativos. No Brasil, por exemplo, “a transferência de propriedade intelectual para subsidiárias em países com menor carga tributária pode ser considerada uma forma de evasão fiscal, sujeita a tributação pela Receita Federal”5. Logicamente, isso não impede que o contribuinte questione a autuação, porém não se pode negar que a empresa se submete ao risco de ser obrigada a pagar impostos sobre os royalties recebidos pela subsidiária no exterior.
Nessa senda, com o intuito de viabilizar a cobrança de imposto de pessoas físicas residentes em território nacional em virtude de receitas auferidas em aplicações financeiras, entidades controladas e trusts no exterior, o governo brasileiro editou a MP 1.171/20236, por meio da qual delimita as alíquotas nos seguintes patamares: (I) 0% (zero por cento) sobre a parcela anual dos rendimentos que não ultrapassar R$ 6.000,00 (seis mil reais); (II) 15% (quinze por cento) sobre a parcela anual dos rendimentos que exceder a R$ 6.000,00 (seis mil reais) e não ultrapassar R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais); (III) 22,5% (vinte e dois inteiros e cinco décimos por cento) sobre a parcela anual dos rendimentos que ultrapassar R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). As alterações passam a vigorar em 01/01/2024 (caso seja convertida em lei a MP).
Os países considerados com tributação favorecida, apenas a título exemplificativo: Ilhas Marshall, Panamá, Ilhas Virgens Britânicas e Irlanda, pois a listagem completa da Receita Federal do Brasil (RFB), está contida na Instrução Normativa nº 1.037/2010.
A referida legislação tem caráter antielisivo7, uma vez que se propõe a fazer com que o ganho auferido com a “flipagem” (redução da carga tributária), quando do reingresso dos recursos ao território nacional em favor do sócio residente no Brasil, seja tributado de forma a desincentivar a opção pela flipagem, a depender do caso concreto.
Em conclusão, o “flip” societário é uma estratégia utilizada por empresas de tecnologia e investidores em startups para reduzir a carga tributária, mas deve ser aplicado com cautela, levando em consideração os reflexos tributários, tanto no país de origem, quanto no país para onde a empresa está sendo transferida. É importante que as empresas busquem aconselhamento jurídico e contábil especializado antes de adotar essa estratégia.
O “flip” societário é uma estratégia que pode trazer diversas vantagens para startups que buscam investimento estrangeiro. Entretanto, para que a operação seja realizada com sucesso, é necessário um grande detalhamento sobre como ela deve ser realizada, levando em conta as questões legais, fiscais e societárias envolvidas. Por isso, é importante estar atento às próximas publicações, que trarão informações mais detalhadas sobre como operacionalizar o flip societário e garantir que a startup possa receber investimentos de forma segura e eficiente.
Para maiores informações e publicações relacionadas com direito societário, tributário, startups, empresas de base tecnológica e studios de games, fique conectado no site e nas redes sociais da Caputo Advogados.
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*Otávio Ronchi – Advogado da Caputo Advogados, Mentor em programas de empreendedorismo como Tecnopuc e PreCapLab – Dimas Ventures, possui LLM em Direito e Processo Tributário (FMP). Pós Graduado em Direito Digital e Proteção de Dados (EBRADI). MBA, em andamento, em Planejamento Tributário e Gestão de Operações Societárias (FBT). Coordenador do Grupo de Estudos: “Direito das Startups e Inovação” da Escola Superior da Advocacia (ESA/RS).
1KLEINBARD, Edward David. Corporate Inversions and the Unbundling of Regulatory Competition. Harvard Law Review em 2014. (traduzido pelo autor) O artigo está disponível: https://harvardlawreview. org/wp-content/uploads/pdfs/vol127_kleinbard.pdf
2Acesso em 09 mai. 2023. no link: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/09/apple-paga-multa-de-143-bilhoes-de-euros-a-irlanda-por-beneficios-fiscais-ilegais.shtml
3NVCA. 2021 Yearbook. Washington DC:2021, página 5. Disponível em https://nvca.org/wp-content/uploads/2021/03/NVCA-2021-Yearbook.pdf. Acessado em 06 jun de 2021.
4Y COMBINATOR. Safe Financing Documents. Março de 2021. Disponível em https://www.ycombinator.com/documents/ Acessado em 06 de jun de 2021.
5Disponível em: https://valor.globo.com/empresas/noticia/2021/06/28/tributacao-de-empresas-de-tecnologia-e-desafio-global.ghtml Acesso em 09 jun. 2023.
6Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2023-2026/2023/Mpv/mpv1171.htm Acesso em 09 jun 2023.
7Norma antielisiva é um conjunto de regras que visam impedir a utilização de artifícios legais com o objetivo de evitar ou reduzir o pagamento de tributos.