A Transformação do Trabalho na Era Digital: Gig Economy

Sumário

* Maria Thereza Henriques

 

 

 

A Gig Economy, também conhecida como como “economia de bicos” ou “economia sob demanda”, vem cada vez mais alavancando sua participação na sociedade e transformando a maneira como o trabalho é realizado na era digital. Essa economia alternativa destaca-se por promover trabalhos temporários ou de curto prazo para várias empresas, permitindo que profissionais saiam do ambiente estável dos escritórios e gerenciem suas próprias carreiras.

O termo “Gig Economy” é amplamente associado ao surgimento de plataformas como Airbnb e Uber, que facilitam a conexão entre profissionais autônomos e consumidores para atividades específicas e de curta duração, sem vínculo empregatício permanente. A grande inovação dessas plataformas reside na inversão da lógica contratual tradicional: são os profissionais que contratam as plataformas, utilizando suas ferramentas de intermediação para atingir seus próprios objetivos econômicos. Por exemplo, no Uber, o motorista busca transportar passageiros e ser remunerado por isso, enquanto o passageiro deseja se deslocar do ponto A ao B com segurança e conveniência. Essa dinâmica cria uma complexa teia de relações jurídicas e econômicas entre todos os envolvidos – plataforma, prestador de serviço e consumidor – desafiando as categorias tradicionais do direito do trabalho e do direito do consumidor. 

O conceito de Gig Economy também enfatiza a flexibilidade profissional, permitindo que indivíduos atuem em múltiplas áreas simultaneamente. Este modelo está se expandindo rapidamente para diversas profissões no Brasil e no mundo, indo muito além de entregadores e motoristas para plataformas como Ifood e Uber,, e abrangendo áreas como design, consultoria, programação e serviços domésticos, entre outras. Essa nova dinâmica econômica levanta questões cruciais sobre proteção social, direitos trabalhistas e regulamentação, exigindo uma reavaliação dos marcos legais existentes para acomodar essas novas formas de trabalho e prestação de serviços.

Entre as vantagens dessa transformação estão a flexibilidade de jornada e a possibilidade de maiores rendimentos. No entanto, a realidade é mais complexa. Embora exista certa flexibilidade na escolha de horários, a liberdade de determinação de valores pelos profissionais é frequentemente limitada. Em muitas plataformas, como no caso de serviços de entrega (delivery) e transporte de passageiros (como a Uber), a precificação é geralmente definida pela própria plataforma, restringindo a autonomia do prestador de serviço. Uma exceção notável é o modelo inovador da 99, que implementou um sistema de “leilão” para algumas corridas, permitindo que motoristas ofereçam seus próprios preços, introduzindo um elemento de competição e potencial aumento de ganhos.

A tecnologia tem transformado profissões ao longo do tempo, mas a Gig Economy trouxe mudanças sem precedentes na organização do trabalho e nas relações econômicas. Por muitos anos, a ideia de tecnologia e internet era vista como tão disruptiva que se argumentava que nenhuma legislação existente poderia regulá-las adequadamente. Assim, plataformas digitais frequentemente operaram sob suas próprias regras, criando um vácuo regulatório. Atualmente, há debates intensos no Brasil e em outros países sobre os direitos dos trabalhadores dessas plataformas, buscando equilibrar a inovação tecnológica com a proteção social e trabalhista.

Esses debates abordam questões cruciais como a natureza do vínculo entre plataformas e prestadores de serviço, a necessidade de garantias mínimas de renda, segurança e saúde no trabalho, e a responsabilidade das plataformas em casos de acidentes ou litígios com consumidores. A evolução desse cenário demanda uma reavaliação contínua dos marcos legais e a criação de novas categorias jurídicas que possam acomodar adequadamente essas relações de trabalho emergentes, garantindo tanto a inovação quanto a proteção dos direitos fundamentais dos trabalhadores.

Portanto, é fundamental estar ciente das desvantagens desse modelo. Sem vínculo empregatício formal, os colaboradores não têm acesso a benefícios como férias, 13º salário, vale-transporte, vale-alimentação e plano de saúde. Essa precariedade pode levar a uma falta de segurança e estabilidade para os trabalhadores.

A geração Millennials e Z têm sido as mais beneficiadas pela Gig Economy, devido à tendência a preferir trabalhos fora do ambiente tradicional de escritório e a valorizar a liberdade de horário. Esse grupo vê na Gig Economy uma forma de conciliar trabalho e vida pessoal de maneira mais equilibrada. Essa mudança no mundo do trabalho, impulsionada pelas novas gerações, está reconfigurando o mercado de trabalho globalmente, como evidenciado por debates em países como a Alemanha, onde a discussão sobre o futuro do trabalho e as novas formas de organização produtiva estão em pauta, conforme notícia da DW1.

Portanto, a Gig Economy também representa uma oportunidade valiosa para aqueles que se identificam com esse modelo de trabalho, que exige independência e maior controle sobre a carreira profissional. Esta nova forma de organização do trabalho, apesar de suas vantagens e desvantagens, está moldando o futuro das relações laborais e exigindo adaptações tanto por parte dos trabalhadores quanto das legislações. Este artigo busca, portanto, explorar algumas das implicações da Gig Economy.

 

Como funciona na prática? 

 

Dentro da economia gig, há uma distinção entre o trabalho realizado online e offline, apesar de ambos serem mediados digitalmente pela tecnologia e plataformas. O trabalho online inclui atividades como crowdsourcing2 e freelancing3 em sites como Amazon Mechanical Turk, Clickworker e Upwork, que são predominantemente compostos por pequenas tarefas desagregadas. Em contraste, o trabalho offline é organizado através de uma plataforma (geralmente um aplicativo) e envolve interação direta com os clientes. Exemplos de trabalho offline incluem serviços sob demanda oferecidos por plataformas como Deliveroo, Uber e TaskRabbit.

Os trabalhadores de gig firmam contratos formais com plataformas de serviços sob demanda para fornecer serviços aos clientes, que podem ser consumidores individuais ou instituições solicitando tarefas específicas. Em algumas plataformas, os trabalhadores procuram ativamente projetos anunciados com diferentes escopos e requisitos, escolhendo quais desejam executar e submetendo propostas iniciais baseadas em preços fixos ou salários por hora. Contudo, muitas plataformas baseadas em localização atribuem tarefas aos trabalhadores via algoritmo e definem as taxas de pagamento. A ausência de negociações entre empregador e empregado permite que essas plataformas possam explorar os trabalhadores, especialmente quando há um grande e competitivo grupo de candidatos.

Por um lado, as plataformas de gig work foram bem recebidas por criarem novos empregos, e muitos trabalhadores agora dependem dessas plataformas para a maior parte de sua renda. Por outro lado, essas plataformas têm sido criticadas por oferecerem condições de trabalho inferiores, sem benefícios trabalhistas, segurança no emprego ou oportunidades de treinamento e promoção.

A Gig Economy supostamente oferece aos trabalhadores flexibilidade para escolher onde, quando e qual trabalho realizar. No entanto, estudiosos questionam a real flexibilidade na prática, destacando a necessidade de distinguir entre flexibilidade controlada pelo trabalhador e flexibilidade controlada pelo gerente. Foi observado que o agendamento de trabalho está envolvido nas relações de poder. Na realidade, a flexibilidade dos trabalhadores na Gig Economy, que é remota e amplamente anônima, isola esses trabalhadores das relações tradicionais de emprego, impactando sua capacidade de construir relacionamentos, bem como seu desempenho, produtividade e capacidade de encontrar significado no trabalho. Além disso, muitos trabalhadores dependentes de plataformas estão se tornando menos móveis porque a natureza e as funcionalidades dessas plataformas ditam o tipo, frequência, recompensas e contexto do trabalho de gig.

 

Gig economy X empreendedorismo

 

Vários autores destacam também que a retórica positiva em torno da perspectiva de carreira sem fronteiras reflete a realidade apenas para certos profissionais altamente educados e qualificados. Em particular, mulheres, minorias e trabalhadores com baixos níveis de educação frequentemente encontram dificuldades nesse tipo de carreira devido à falta de recursos psicológicos e materiais que os empregadores geralmente fornecem. Pesquisas mostram que os estudos sobre carreiras sem fronteiras tendem a ignorar os efeitos prejudiciais dessas carreiras, especialmente no contexto de uma força de trabalho dividida em duas camadas: o nível superior, composto por indivíduos com habilidades valiosas e desejadas que lhes permitem exigir e receber um tratamento justo dos empregadores, e o nível inferior, formado por pessoas cujas habilidades são facilmente substituíveis.

A economia digital está inserida em um contexto de desenvolvimento tecnológico que acelera transformações de diversas naturezas. Tecnologias como armazenamento e acesso remotos em nuvem, gerenciamento de grandes volumes de dados, aplicativos móveis, geolocalização, internet das coisas e inteligência artificial são cada vez mais acessíveis a organizações e indivíduos. As plataformas digitais permeiam, hoje, vários aspectos da vida social e econômica, desde mídias sociais até o fornecimento de serviços e produtos em áreas como manufatura, agricultura e setor financeiro. Na organização econômica online e sob demanda, surgem oportunidades para transacionar qualquer coisa – ativos, habilidades, tempo e dinheiro –, suavizando as linhas divisórias entre as searas pessoal e profissional, trabalho e lazer, emprego e trabalho casual.

Os impactos na organização do trabalho são evidentes tanto para empresas quanto para trabalhadores. Há um esforço crescente para ampliar a compreensão desse fenômeno, que é amplo, multifacetado e estatisticamente relevante. É importante entender que esse fenômeno não pode ser compreendido apenas sob o aspecto da tecnologia ou do consumo/serviço, mas deve considerar o trabalho como elemento fundamental. Com rápido crescimento na última década, tanto no número de plataformas quanto no de trabalhadores envolvidos, a gig economy tem recebido atenção em diversas pesquisas.

Está em curso um processo de agenciamento do trabalho informal na formação e expansão de mercados laborais digitais através da gig economy, fenômeno conhecido como “empresariamento da informalidade”. Diante do surgimento de novos modos de organização econômica e laboral como a gig economy, ocorrem importantes reflexos que resultam em reconfigurações do mercado de trabalho, afetando relações laborais, organizações coletivas e trajetórias individuais. O empresariamento da informalidade é um fenômeno ligado ao reconhecimento do grande potencial de exploração econômica de atividades informais realizadas de modo individual por bilhões de pessoas em todo o mundo, agora controladas e geridas por grandes empresas multinacionais.

 

Mudanças nas Relações de Trabalho na Gig Economy

 

A discussão sobre a existência de vínculo empregatício entre motoristas e plataformas de transporte privado, como a Uber, tem se intensificado. Questões como autonomia, direitos mínimos, contrato de parceria, novas modalidades de trabalho, exigência de legislação específica, subordinação jurídica, onerosidade, dano moral coletivo e fraude trabalhista estão em debate. Esta discussão é global e frequentemente discutida pelo Poder Judiciário brasileiro. 

Para um contrato ser regido pela CLT, são necessários cinco elementos, sendo a pessoalidade um dos principais. Mesmo com a constituição de pessoa jurídica, se for para fraudar a legislação trabalhista, não eliminará o caráter pessoal da relação. O TST, em decisões como o AIRR-20614-50.2020.5.04.00144, geralmente não reconhece vínculo empregatício entre motoristas e plataformas devido à ausência de subordinação jurídica. A Corte considera que a liberdade do motorista em escolher viagens, dias e horários caracteriza uma relação de parceria, não de emprego. Contudo, o Direito do Trabalho também se baseia em princípios como o da primazia da realidade, que define a relação jurídica pela realidade dos fatos, independentemente do contrato formal.

Existem diversos pontos de vista sobre a subordinação jurídica. Alguns argumentam que a liberdade dos motoristas para escolherem quando e se trabalhar indica ausência de subordinação. Outros defendem que a subordinação é evidente no controle exercido pelas plataformas por meio de algoritmos, sistemas de avaliação e regras rigorosas. A falta de autonomia real e a estrutura das plataformas sugerem a existência de vínculo empregatício. Esta questão ainda requer amadurecimento jurídico e pode levar a mudanças na classificação do trabalho autônomo, reconhecimento de vínculo empregatício ou criação de uma terceira forma de trabalho.

 

Normatização das Relações na Gig Economy

 

Recentemente, o juiz Maurício Pereira Simões, da 4ª Vara do Trabalho de São Paulo, havia determinado que a Uber deveria contratar os motoristas que prestam serviços à plataforma, exigindo que a empresa assine a CLT para todos os motoristas. Apesar disso, a Uber planeja recorrer da decisão, com base na jurisprudência amplamente favorável à empresa, que defende a inexistência de vínculo empregatício entre os motoristas e a empresa. Até mesmo o Supremo Tribunal Federal (STF) já se posicionou nesse sentido, o que fortalece a expectativa  de que a decisão será reformada.

A informalidade sempre esteve presente em diferentes mercados de trabalho, mas com a gig economy, ela ganha destaque por meio do empresariamento. Grandes empresas, atuando através de plataformas, intermediam o trabalho informal, criando um novo regime laboral. Este novo regime mistura características de atividades formais, como controle, avaliação de desempenho e incentivos financeiros, com a natureza autônoma e a falta de vínculo direto da informalidade. O empresariamento da informalidade manifesta-se em diversos aspectos, como o estatuto de emprego e acesso à proteção social, autonomia e controle, rendimentos e recolhimento de tributos, processos de treinamento e desenvolvimento de habilidades e prospecção de trabalhadores, bem como na ausência de representação coletiva.

A gig economy criou novos mercados de trabalho e transformou outros, trazendo antigos desafios e políticas de trabalho em novas formas. As mudanças nos mercados laborais digitais (MLDs) e as consequências desse novo modo de organização reforçam a necessidade de investigações profundas em suas diversas manifestações concretas. O novo regimento laboral imposto pela gig economy exige uma análise detalhada sobre a adaptação das políticas laborais, o impacto nas relações de trabalho e a proteção dos direitos dos trabalhadores nesse cenário dinâmico e frequentemente desregulado.

Diante da complexidade e atualidade dessas questões, torna-se crucial contar com suporte jurídico especializado. Profissionais que estão constantemente atualizados sobre as posições da jurisprudência em relação às novas dinâmicas de trabalho são essenciais para navegar esse terreno em constante evolução. Em um mundo onde as relações profissionais são cada vez mais fluidas, o conhecimento dos critérios adotados pela jurisprudência nacional para determinar a existência ou não de vínculo empregatício pode ser determinante para mitigar riscos jurídicos e assegurar a conformidade do seu modelo de negócios.

Contar com uma assessoria jurídica experiente nesse campo não é apenas uma precaução, mas uma necessidade estratégica para empresas e profissionais que operam no contexto da gig economy. Essa expertise pode fazer a diferença entre aproveitar as oportunidades oferecidas por esse novo paradigma de trabalho e enfrentar desafios legais potencialmente custosos.

Para mais informações sobre como navegar esse novo cenário laboral e proteger seus interesses, não hesite em buscar orientação jurídica especializada. E não deixe de conferir nosso artigo sobre Polywork para mais insights sobre as tendências emergentes no mundo do trabalho!

 

 


*Maria Thereza Henriques, estagiária no Caputo Advogados Associados, assessoria empresarial com ênfase em Startups e Estúdios de Games. Bacharelanda em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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Referências

CHÉROLET, Brenda. Você sabe o que é Gig Economy? E+B Educação, 2022. Disponível em: https://www.educamaisbrasil.com.br/educacao/carreira/voce-sabe-o-que-e-gig-economy. Acesso em: 26 de jun. 2024.

O TEMPO Economia. ‘Gig economy’: o que é o trabalho que muda cada vez mais profissões no Brasil. 02 jun. 2023. Disponível em: https://www.otempo.com.br/economia/gig-economy-o-que-e-o-trabalho-que-muda-cada-vez-mais-profissoes-no-brasil-1.2881086. Acesso em: 26 de jun. 2024.

 

KOST, Dominique; FIESELER, Christian; WONG, Sut I. Boundaryless careers in the gig economy: An oxymoron? Human Resource Management Journal, [s. l.], v. 29, n. 3, p. 533-547, 19 nov. 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1111/1748-8583.12265. Acesso em: 26 de jun. 2024.

https://www.otempo.com.br/economia/gig-economy-o-que-e-o-trabalho-que-muda-cada-vez-mais-profissoes-no-brasil-1.2881086

 

VACLAVIK, M. C.; OLTRAMARI, A. P.; OLIVEIRA, S. R. de. Empresariando a informalidade: um debate teórico à luz da gig economy. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro, RJ, v. 20, n. 2, p. 247–258, 2022. DOI: 10.1590/1679-395120210065. Disponível em: https://periodicos.fgv.br/cadernosebape/article/view/85536. Acesso em: 26 jun. 2024.

 

 

1https://www.dw.com/pt-br/os-alem%C3%A3es-est%C3%A3o-se-tornando-pregui%C3%A7osos/a-69089435 

2Crowdsourcing é a prática de obter ideias, serviços ou conteúdo solicitando contribuições de um grande grupo de pessoas, geralmente via internet, em vez de usar fontes tradicionais.

3Freelancing é uma forma de trabalho autônomo onde profissionais oferecem seus serviços a diferentes clientes por projeto ou tarefa, sem vínculo empregatício fixo.

4https://tst.jus.br/-/motorista-n%C3%A3o-consegue-reconhecer-v%C3%ADnculo-de-emprego-com-a-uber%C2%A0 

5https://ww2.trt2.jus.br/noticias/noticias/noticia/sentenca-condena-aplicativo-de-transportes-em-r-1-bilhao-por-danos-morais-coletivos 

 

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