*Por Rafael Duarte
Introdução
O setor de games tem crescido exponencialmente nos últimos anos, atraindo desenvolvedores e investidores do mundo todo. Nesse contexto, as publicadoras (publishers) desempenham um papel crucial, não apenas financiando, mas também promovendo e distribuindo os jogos para mercados cada vez maiores.
Apesar de fundamentais, as relações entre estúdios de games e publicadoras podem ser desafiadoras, especialmente quando os contratos não são bem elaborados; inclusive, por conta da assimetria de informações e forças, é muito comum que as publicadoras estejam devidamente acompanhadas por seus departamentos jurídicos, enquanto os estúdios ou não possuem apoio jurídico ou, quando possuem, não conseguem se valer de profissionais especializados nessa área com experiência suficiente para atender às particularidades do universo de games.
Neste artigo, portanto, vamos explorar quais são os problemas principais que podem advir dessas relações contratuais, como prevenir disputas contratuais com publicadoras e, caso elas surjam, quais as melhores estratégias disponíveis para resolvê-las.
Principais Causas de Disputas Contratuais
Antes de abordar soluções, é essencial entender as causas mais comuns de disputas entre estúdios e publicadoras. Conhecê-las é o primeiro passo para a prevenção.
2.1) Distribuição de Receitas (Revenue Share)
A divisão das receitas é uma das principais fontes de atrito entre estúdios desenvolvedores e publicadoras. Termos contratuais ambíguos, especialmente no cálculo de “lucro líquido”, “lucro bruto”, “faturamento”, geram interpretações conflitantes, quando não houver detalhamento específico em contrato, afastando qualquer espaço para dúvida a respeito do que se deve entender como conteúdo desses conceitos.
Adicionalmente, problemas poderão surgir a partir de eventuais atrasos no repasse de valores e a ausência de controle acerca da fidedignidade dos valores informados, além de discussões sobre o cabimento (ou não) de auditorias independentes, o que poderá minar a confiança entre as partes, suscitando disputas financeiras e jurídicas.
2.2) Direitos Autorais e Propriedade Intelectual
A titularidade sobre os direitos autorais do jogo e suas derivações é um tema delicado. Contratos mal redigidos ou omissões podem gerar disputas, principalmente em situações de extinção contratual ou na exploração de expansões, spin-offs ou adaptações (consideradas, juridicamente, como obras derivadas).
A clareza na definição de quem detém os direitos sobre a obra já desenvolvida – e sobre o que for criado a partir do conteúdo base – é essencial para evitar conflitos futuros, de modo que eventual omissão contratual não poderá ser vista como uma boa prática.
2.3) Cronogramas e Entregas
Os atrasos no desenvolvimento não são ocorrência rara na indústria de games como vocês certamente sabem e, como tal, o descumprimento de prazos ou entregas de qualidade inferior ao esperado são palco perfeito para a geração de atritos entre desenvolvedoras e publicadoras.
Conflitos também podem surgir quando, apesar de o estúdio ter feito tudo certo, as publicadoras adiam os lançamentos ou falham em cumprir as suas próprias obrigações (ex.: prazo para aprovação de milestones, falha no suporte técnico e não realização de investimentos em marketing). Não demanda grande reflexão chegar à conclusão de que todos esses fatores induzem à ocorrência de severos prejuízos ao estúdio e aos resultados do jogo como um todo, ampliando, naturalmente, os conflitos contratuais.
2.4) Marketing e Promoção
O desempenho comercial de um jogo está diretamente relacionado à execução de estratégias de marketing prometidas pela publicadora; de nada adianta criar um jogo incrível se ninguém sabe que ele existe.
No entanto, caso os compromissos de investimento não sejam cumpridos, poderá resultar em campanhas abaixo do esperado. Esse desalinhamento prejudica a visibilidade do jogo no mercado e alimenta a insatisfação do estúdio, que, muitas vezes, dedica centenas ou milhares de horas de sua equipe no desenvolvimento e depende das vendas para poder recuperar todo o capital humano e intelectual investido.
Como Prevenir Disputas Contratuais
A prevenção começa com a elaboração de um contrato sólido, que considere as particularidades do mercado de games.
Aqui estão os pilares fundamentais:
3.1) Transparência Financeira
Um contrato robusto deve especificar com clareza os critérios para a divisão de receitas, detalhando o cálculo de valores como lucro líquido ou bruto (deixando muito claros os conceitos adotados) e definindo prazos para os repasses financeiros. A inclusão de auditorias regulares realizadas por terceiros independentes é essencial para garantir a conformidade e fortalecer a confiança entre as partes, podendo-se exigir, ainda, a criação de um dashboard compartilhado para acompanhamento em tempo real das vendas realizadas (sem prejuízo das auditorias periódicas).
Inclusive, no caso das auditorias, é uma boa prática prever que, caso a auditoria constate a existência de alguma irregularidade, o valor pendente de pagamento deverá ser pago de imediato (acrescido de multa), bem como que os honorários dos auditores serão arcados exclusivamente pela parte que cometeu o equívoco na elaboração do relatório.
3.2) Definição de Entregas e Prazos
Cláusulas bem estruturadas devem estipular cronogramas detalhados e as responsabilidades de cada parte. Para minimizar ambiguidades, recomenda-se incluir penalidades proporcionais para atrasos ou descumprimentos, ao mesmo tempo que se preveem flexibilidades restritas em situações excepcionais, como casos de força maior.
É muito importante que haja, assim, um cronograma fragmentado, organizado por milestones, para o fim de se evitar que tudo fique concentrado a um prazo único situado no final do projeto; a melhor forma de se assegurar que tudo está correndo bem é criar pequenos passos, visando a sucessivos consertos de rota.
3.3) Proteção à Propriedade Intelectual
A titularidade do jogo e de suas derivações deve ser definida de forma inequívoca no contrato. Uma prática recomendada é prever cláusulas que assegurem a reversão dos direitos ao estúdio desenvolvedor em situações de extinção contratual proveniente de descumprimento contratual cometido pela publicadora, garantindo não apenas a proteção dos ativos criativos, como disponibilizando ao estúdio o direito de se vincular a outra publicadora no futuro, para fins de retornar o seu jogo ao mercado.
3.4) Cláusulas de Resolução de Conflitos
A adoção de métodos alternativos de resolução de disputas, como mediação e arbitragem, é uma estratégia eficaz para lidar com conflitos. Esses mecanismos oferecem maior agilidade, sigilo e custos reduzidos em comparação ao processo judicial tradicional, sendo ideais para disputas contratuais no setor de games, especialmente considerando que relações envolvendo publicação de jogos eletrônicos tendem a abranger publicadoras estrangeiras.
Logo, em virtude da usual diferença de poderes entre as partes envolvidas, é bastante difícil que se consiga estipular, em contrato, que a jurisdição competente será a brasileira (apesar de não ser impossível).
Métodos de Resolução de Disputas
Digamos que, apesar de terem sido adotadas todas as medidas de cautela das quais falamos anteriormente, ainda assim, o conflito surgiu. Ainda não é momento de desespero, pois as estratégias para lidar com esse momento seguem existindo à disposição dos estúdios, desde que devidamente assessorados. Os métodos mais comuns são:
4.1) Mediação
A mediação consiste em um processo de cunho ainda amigável e conciliador, por meio do qual as partes buscam encontrar uma solução protagonizada por elas, mas contando com o auxílio de um mediador imparcial. Por sua informalidade e custo reduzido, é especialmente indicada para disputas de menor gravidade, tendo como propósito primordial garantir e preservar o relacionamento comercial entre o estúdio e a publicadora.
Basicamente, está relacionado com a conclusão compartilhada entre as partes de que levar o conflito adiante não será comercial e economicamente interessada para nenhum deles; é ceder para prosperar.
4.2) Arbitragem
A arbitragem é ideal para questões contratuais mais complexas, como divergências sobre a interpretação de cláusulas. Esse método oferece vantagens como sigilo, agilidade e decisões técnicas, sendo ainda mais eficaz quando os árbitros possuem experiência no setor de games, algo que muito dificilmente será possível obter quando se busca a via judicial (dada a enorme particularidade do segmento).
No entanto, é essencial avaliar a jurisdição prevista no contrato, já que a arbitragem em outros países pode gerar custos elevados e exigir o suporte de advogados locais.
4.3) Judicialização
A judicialização deve ser considerada como última alternativa, aplicada a descumprimentos graves, como a retenção indevida de receitas. Porém, é crucial atentar para a jurisdição definida no contrato: se não for a brasileira, os custos podem se tornar significativamente maiores devido à necessidade de atuar em tribunais estrangeiros.
Além disso, a judicialização tende a ser mais lenta e pode expor publicamente o conflito, o que pode prejudicar a reputação das partes envolvidas e, acima de tudo, do próprio jogo, manchando a visão do produto perante o mercado e tornando o game menos atrativo para investidores.
Exemplos Práticos de Como Resolver Problemas em Contratos de Publicação de Games
5.1) Caso 1 → Atraso no Repasse de Receitas
Imaginemos que um estúdio assumirá a integralidade do desenvolvimento, mas está preocupado com eventual ocorrência de atrasos pela publicadora na realização dos repasses das receitas geradas pelo game. Na versão enviada pela publicadora, há previsão de auditorias independentes, mas sem qualquer especificação de prazos para o repasse.
Para lidar com essa questão, uma solução possível é, na devolutiva da minuta enviada, fazer a revisão do contrato incluindo prazos claros e sanções financeiras para atrasos; isto é, contanto que a publicadora respeite os prazos fixados, não haverá qualquer penalização. Se descumprir, responderá por isso.
5.2) Caso 2: Disputa sobre Direitos Autorais
A publicadora encaminhou uma minuta para o estúdio, na seguinte estrutura contratual: a publicadora faria investimentos na casa dos milhares de dólares em marketing e, em contrapartida, o estúdio ficaria responsável por todos os custos de desenvolvimento em termos de equipe alocada. Havia cláusula dispondo que a propriedade intelectual seria compartilhada entre as partes, independentemente do que acontecesse em termos de cumprimento contratual.
Para lidar com a natural preocupação do estúdio de que, mesmo cometendo falhas no contrato, a publicadora poderia reivindicar a titularidade de personagens e elementos do jogo, uma solução potencial seria inserir uma cláusula de reversão de direitos caso o investimento prometido pela publicadora não ocorresse. É o incentivo adequado para que o contrato seja cumprido à risca.
A Importância da Assessoria Jurídica Desde o Início das Negociações
Muitas vezes, estúdios de games só buscam assessoria jurídica no momento de formalizar a relação com uma publicadora após meses de negociações e acordos verbais conduzidos isoladamente pelas empresas. Embora a formalização contratual seja essencial, a ausência de suporte jurídico durante a fase inicial de tratativas pode gerar riscos significativos para o estúdio.
Negociações com publicadoras envolvem aspectos técnicos e estratégicos que vão muito além do texto final do contrato. Questões como divisão de receitas, propriedade intelectual, cláusulas de exclusividade, investimentos em marketing e até mesmo obrigações futuras podem ser decididas informalmente, sem uma análise criteriosa de suas implicações legais e comerciais. Isto é, um apoio jurídico que consista apenas na formalização de uma negociação – e não em sua concepção – é “carimbo”, e não suporte efetivo.
Por conta disso, fazemos o destaque: contar com uma assessoria jurídica especializada desde o início das negociações oferece diversos benefícios:
6.1) Entendimento Profundo do Setor de Games
Contar com uma equipe de advogados especializados em games garante um entendimento aprofundado sobre os desafios e particularidades desse mercado. Esse conhecimento e experiência acumulada ao longo de anos atuando no segmento permite compartilhar as lições extraídas de vivências semelhantes de outros clientes, para o fim de identificar termos de negociação desfavoráveis e propor contrapartidas estratégicas que alinhem os interesses do estúdio e da publicadora, elevando a qualidade do acordo desde o início.
6.2) Antecipação de Riscos Jurídicos e Comerciais
Negociações podem ignorar pontos críticos, como impactos tributários na divisão de receitas, titularidade sobre ativos derivados ou conformidade com regulamentações internacionais. Um jurídico experiente atua preventivamente, mapeando riscos e apresentando soluções práticas para evitar problemas futuros que comprometam a segurança jurídica e financeira do estúdio.
6.3) Negociação de Termos Mais Favoráveis
Publicadoras geralmente oferecem contratos padrão projetados para proteger seus próprios interesses, muitas vezes acompanhadas por um grupo jurídico com vivência no segmento e voltado a impor as melhores condições possíveis para a publicadora.
Visando a equilibrar esse jogo, o estúdio passa a contar com uma equipe jurídica especializada, plenamente apta a analisar essas cláusulas com senso crítico, renegociando termos mais equilibrados para o estúdio. Isso reduz riscos de perdas financeiras e garante a manutenção dos direitos essenciais sobre o jogo.
6.4) Garantia de Formalização de Acordos Preliminares
Aspectos fundamentais discutidos durante as negociações e que estão atrelados a obrigações da publicadora (ex.: prazos para adiantamentos e repasses, investimentos em marketing etc.) podem ser largamente discutidos informalmente entre as partes, mas maliciosamente ocultados no contrato final.
Todos esses compromissos apresentados informalmente precisam estar devidamente documentados, em instrumentos preliminares, como Memorandos de Entendimento (MoUs) ou Term Sheets, protegendo o estúdio de mudanças posteriores. Isto é, essas promessas iniciais não são “palavras ao vento”, e sim compromissos vinculantes, que não poderão ser abandonados pela publicadora.
6.5) Blindagem Contra Abusos e Cláusulas Leoninas
Caso não esteja devidamente orientado, o estúdio poderá aceitar cláusulas que limitam sua autonomia, como exclusividades excessivas ou condições que assegurem em favor da publicadora resolver o contrato com base em ocorrências muitas vezes de menor importância.
Como o desenvolvimento de um game exige uma grande dedicação de tempo e capital intelectual de profissionais altamente capacitados, todo esse investimento não pode ficar sujeito a se esvair num piscar de olhos; o contrato precisa estar equilibrado e oferecer termos justos e equilibrados, protegendo a sustentabilidade do estúdio e suas operações.
6.6) Construção de Relacionamentos Sustentáveis
Uma assessoria jurídica envolvida desde a concepção do negócio contribui para criar uma relação de confiança e equilíbrio entre o estúdio e a publicadora. A criação de termos claros, objetivos e que oferecem ao contrato a necessária operabilidade para que o negócio se desenvolva satisfatoriamente ao longo de toda a sua vigência não significa apenas proteger o estúdio de ser enganada ou prejudicada pela publicadora.
Trata-se, acima de tudo, de garantir que a relação fluirá sem maiores percalços, assegurando a extração dos melhores resultados possíveis da parceria comercial, com ganhos recíprocos, ao promover um ambiente de transparência, fundamental para parcerias de longo prazo.
Conclusão
Contratos sólidos são a base fundante de relações comerciais saudáveis em qualquer setor da economia e não é nada diferente no setor de games. Prevenir disputas é sempre preferível a resolvê-las, mas, quando necessário, é importante contar com estratégias adequadas para proteger os interesses do seu estúdio.
Ter ao seu lado uma equipe jurídica experiente no ramo de games não é apenas uma questão de segurança jurídica, sendo, em verdade, um investimento estratégico. Essa assessoria pode ser o diferencial que permitirá ao estúdio desenvolver jogos com foco no que realmente importa: criatividade e inovação, sem se preocupar com armadilhas contratuais ou disputas desnecessárias, podendo deixar essa questão para ser conduzida por profissionais que se ocupam dessas questões diariamente.
Seja estratégico: inicie suas negociações com publicadoras com a orientação de especialistas que entendem as particularidades do setor de games, evitando o problema de tentar revisitar pontos sensíveis que foram deixados para trás numa negociação que avançou sem o acompanhamento de um olhar mais treinado e experimentado.
Caso você tenha interesse em mais conteúdos sobre estúdios de games, contratos e propriedade intelectual, ou, ainda, deseja revisar ou elaborar contratos que protejam seu jogo e sua empresa, entre em contato conosco. Estamos prontos para ajudar seu estúdio a crescer com segurança jurídica. Permaneça conectado no site e nas redes sociais da Caputo Duarte Advogados, nos quais sempre entregamos conteúdo atualizado e detalhado sobre startups, games, inovação e empreendedorismo.
*Rafael Duarte – Advogado, sócio do escritório Caputo Duarte Advogados, com atuação especializada em Startups, Studios de Games e Empresas de Base Tecnológica. Pós-graduando em Direito Digital e Proteção de Dados; Pós-graduado em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul; Pós-graduado em Direito Negocial Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito; Pós-Graduado em Direito Imobiliário pela Faculdade Legale/SP; Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale/SP; Mentor em programas de empreendedorismo e desenvolvimento de negócios inovadores, tais como InovAtiva Brasil, START (SEBRAE), entre outros; Diretor da Associação Gaúcha de Direito Imobiliário Empresarial (AGADIE) e Membro da Comissão de Direito Imobiliário da OAB/RS.