A Lei Complementar 208/2024 e suas Implicações para o Sistema Jurídico/Tributário Brasileiro

Sumário

 

*Otávio Ronchi

 

 

Introdução

 

O cenário jurídico brasileiro passou por uma transformação significativa em meados de 2024, com a promulgação de uma nova legislação que promete reestruturar temas fundamentais do Direito Financeiro e Tributário. Em 2 de julho de 2024, a publicação da Lei Complementar 208/24 (LC 208/24) introduziu modificações significativas em dois pilares fundamentais do sistema jurídico brasileiro: a Lei 4.320/64 e o Código Tributário Nacional (CTN)1. Estas alterações prometem remodelar aspectos cruciais do Direito Financeiro e Tributário no país.

 

A Lei 4.320/64, reconhecida como uma das normas gerais mais relevantes do Direito Financeiro brasileiro, estabelece os princípios e procedimentos para o controle e elaboração do orçamento e balanço das entidades públicas. Por outro lado, o CTN serve como a principal fonte reguladora do Direito Tributário, delineando as normas que regem os tributos em âmbito nacional.

 

A importância dessas duas normativas no ordenamento jurídico brasileiro não pode ser subestimada. A Lei 4.320/64 tem sido, por décadas, o alicerce sobre o qual se constrói a gestão financeira pública no Brasil, orientando a elaboração e execução orçamentária em todos os níveis da federação. Ela estabelece as diretrizes para a contabilidade pública, assegurando transparência e uniformidade nas práticas financeiras governamentais.

 

O Código Tributário Nacional, por sua vez, desempenha um papel crucial na regulamentação das relações entre o Estado e os contribuintes. Desde sua promulgação em 1966, o CTN tem sido a pedra angular do sistema tributário brasileiro, definindo conceitos fundamentais, estabelecendo as espécies tributárias e delineando os princípios que regem a tributação no país.

 

A LC 208/24 vem, portanto, para alterar esse cenário consolidado, trazendo inovações que prometem impactar profundamente a forma como o Estado gerencia suas finanças e como se relaciona com os contribuintes. As mudanças introduzidas por esta nova legislação refletem a necessidade de adaptação do sistema jurídico às realidades econômicas e financeiras do século XXI, marcadas por desafios fiscais crescentes e pela busca por maior eficiência na gestão pública.

 

Entre as principais inovações trazidas pela LC 208/24 estão (i) a autorização para a cessão de créditos tributários e não-tributários pelos entes federados; (ii) o reconhecimento do protesto extrajudicial como causa interruptiva da prescrição (iii) e a permissão para que a Administração Tributária solicite informações sigilosas a entidades e órgãos públicos ou privados. Cada uma dessas mudanças tem o potencial de alterar significativamente as práticas estabelecidas no âmbito do Direito Financeiro e Tributário.

 

Nos próximos pontos exploraremos em detalhes cada uma dessas alterações, analisando suas implicações práticas, os desafios que elas apresentam e as oportunidades que podem surgir a partir desse novo marco legal. Examinaremos como essas mudanças podem afetar a gestão das finanças públicas, a relação entre o fisco e os contribuintes, e o panorama geral do Direito Financeiro e Tributário no Brasil.

 

Modificações na Lei 4.320/64: a securitização2 da dívida pública

 

A alteração mais notável introduzida pela LC 208/24 na Lei 4.320/64 é o que tem sido denominado como “Securitização da Dívida Pública”. Em essência, esta mudança permite a venda com deságio dos direitos de recebimento de dívidas, sejam elas de natureza tributária ou não. Esta cessão poderá ser realizada para pessoas jurídicas de direito privado ou para Fundos de Investimento regulamentados pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

 

  • O Mecanismo da Cessão

 

Para operacionalizar este processo, a Lei prevê a criação de uma Sociedade de Propósito Específico (SPE) pelo ente cedente, que pode ser a União, os Estados, o Distrito Federal ou os Municípios. Esta empresa pública terá a responsabilidade de administrar e executar as operações de cessão de crédito. Na prática, a SPE emitirá títulos representativos de parcelas da dívida, combinando dívidas de maior e menor potencial de pagamento para equilibrar o risco para os investidores.

 

Escopo dos Créditos Elegíveis 

 

As dívidas que poderão ser incluídas neste tipo de operação abrangem aquelas parceladas administrativamente, por parcelamento legal ou judicial. É importante ressaltar que apenas os créditos já constituídos e reconhecidos pelo devedor ou contribuinte poderão ser objeto da securitização. Isso inclui dívidas inscritas em dívida ativa ou que foram objeto de reconhecimento por outras vias, como o Refis.

 

  • Condições Adicionais para a Cessão:

 

Manutenção dos Encargos: Todos os critérios vinculados à dívida deverão permanecer inalterados, incluindo índices de atualização, juros, multas, condições de pagamento e vencimento, além de quaisquer outros termos acordados entre as Fazendas Públicas e o devedor.

Prerrogativa de Cobrança: O contrato de cessão de créditos deve assegurar à Fazenda ou ao órgão da administração pública (como as Procuradorias da Fazenda) o direito de realizar a cobrança judicial e extrajudicial dos créditos que embasaram a emissão dos títulos vendidos pela SPE.

 

Isenção de Responsabilidade do Ente Cedente: Após a efetivação da operação, o Ente Público Cedente (seja a Fazenda ou a Procuradoria Fazendária) ficará isento de qualquer responsabilidade, compromisso ou dívida relacionada à obrigação de pagamento do contribuinte perante o Cessionário (o investidor que adquiriu os títulos representativos da dívida). Em outras palavras, o Ente Público transfere ao investidor comprador o risco de não recebimento do crédito.

 

Compartilhamento de Informações: Para facilitar o trabalho da SPE na elaboração dos títulos a serem cedidos, a LC 208/24 introduziu os parágrafos 4º e 5º ao art. 198 do CTN. Esta alteração permite à Administração Tributária requisitar informações que melhor reflitam o risco associado a cada devedor. Essas informações podem ser de natureza cadastral ou patrimonial e podem ser solicitadas a órgãos e entidades públicos e privados, incluindo aqueles com obrigação legal de manter cadastros, registros e controlar operações de bens e direitos, como os Cartórios.

 

É importante notar que alguns Estados, como São Paulo, Rio Grande do Sul e Minas Gerais, já vinham realizando operações similares antes da publicação da LC 208/24. Para estes casos, a Lei Complementar assegurou que as operações continuarão a ser regidas pelas leis estaduais já existentes.

 

O reconhecimento do protesto extrajudicial como causa interruptiva da prescrição

 

A Lei Complementar 208/24 trouxe alterações substanciais ao Código Tributário Nacional (CTN), especificamente nos artigos 174 e 198. Essas mudanças têm implicações diretas e profundas na forma como a Fazenda Pública procede com a cobrança de créditos tributários, reformulando aspectos cruciais do processo de recuperação fiscal.

Reformulação do Prazo Prescricional: Artigo 174 do CTN – Uma das mudanças mais significativas introduzidas pela LC 208/24 diz respeito ao prazo prescricional para a cobrança de créditos tributários, conforme estabelecido no artigo 174 do CTN. Historicamente, o Fisco dispõe de um prazo de cinco anos para efetuar a cobrança de um crédito tributário já constituído. Este prazo, no entanto, está sujeito a interrupções sob determinadas circunstâncias, as quais, quando ocorrem, resultam no recomeço da contagem do prazo prescricional.

Antes da promulgação da LC 208/24, o artigo 174 do CTN listava quatro causas interruptivas da prescrição:

 

          1. O despacho do juiz ordenando a citação em execução fiscal; 
          2. O protesto judicial; 
          3. Qualquer ato judicial que constituísse em mora o devedor; 
          4. Qualquer ato inequívoco, ainda que extrajudicial, que importasse em reconhecimento do débito pelo devedor.

 

A nova legislação introduziu uma modificação crucial no inciso II deste artigo, expandindo seu escopo para incluir também o protesto extrajudicial como causa interruptiva da prescrição. Esta alteração tem implicações práticas significativas para a estratégia de cobrança da Fazenda Pública.

 

Impactos Práticos da Inclusão do Protesto Extrajudicial – A inclusão do protesto extrajudicial como causa interruptiva da prescrição representa uma mudança estratégica na abordagem do Fisco para a recuperação de créditos tributários. Esta prática, que já vinha sendo adotada, especialmente para dívidas de menor valor, agora ganha respaldo legal e maior eficácia.

 

O protesto extrajudicial funciona como um mecanismo de pressão sobre o devedor. Ao ter um título protestado, o contribuinte é negativado, o que pode acarretar consequências práticas significativas em sua vida civil e financeira. Essas consequências podem incluir dificuldades na obtenção de financiamentos, restrições na emissão de cartões de crédito, obstáculos na realização de transações comerciais, entre outras limitações. A eficácia deste método reside na sua capacidade de criar um incentivo tangível para o pagamento da dívida. O impacto imediato na vida financeira do devedor frequentemente resulta em uma maior disposição para quitar o débito ou buscar uma negociação com o Fisco.

 

Extensão do Prazo de Cobrança – Além de seu efeito persuasivo, a interrupção da prescrição causada pelo protesto extrajudicial proporciona à Fazenda Pública um prazo adicional para a cobrança dos créditos tributários. Esta extensão do prazo é particularmente valiosa em casos complexos ou quando o volume de cobranças é elevado, permitindo que o Fisco gerencie suas ações de recuperação de crédito de forma mais estratégica e eficiente.

 

Implicações para a Estratégia de Cobrança do Fisco – A inclusão do protesto extrajudicial como causa interruptiva da prescrição representa uma ferramenta adicional no arsenal do Fisco para a recuperação de créditos tributários. Esta mudança permite uma abordagem mais flexível e potencialmente mais eficaz na cobrança de dívidas.

 

Para dívidas de menor valor, o protesto extrajudicial pode se tornar a primeira linha de ação, evitando os custos e a complexidade associados a processos judiciais. Para débitos mais substanciais, pode ser utilizado como uma medida complementar, aumentando a pressão sobre o devedor e potencialmente acelerando o processo de recuperação.

 

Considerações sobre o Equilíbrio entre Eficiência Fiscal e Direitos do Contribuinte – Embora essa alteração represente um fortalecimento das ferramentas de cobrança à disposição do Fisco, é importante considerar o equilíbrio entre a eficiência na recuperação de créditos tributários e os direitos dos contribuintes. A expansão das causas interruptivas da prescrição pode ser vista como uma medida que favorece o Estado em detrimento do contribuinte, prolongando o período durante o qual este permanece sob a ameaça de cobrança.

Nesse contexto, é fundamental que a aplicação dessa nova disposição seja feita de maneira equilibrada e proporcional, respeitando os princípios do devido processo legal e da segurança jurídica. A transparência nos procedimentos de cobrança e a disponibilidade de mecanismos de defesa e negociação para os contribuintes continuam sendo elementos essenciais para garantir a justiça e a equidade no sistema tributário.

Em suma, a alteração promovida pela LC 208/24 no artigo 174 do CTN representa uma mudança significativa na dinâmica da cobrança de créditos tributários no Brasil. Ao mesmo tempo em que fortalece a posição do Fisco, ela também suscita reflexões importantes sobre o equilíbrio nas relações entre Estado e contribuinte no âmbito do Direito Tributário. 

 

Modificações no artigo 198 do CNT: uma nova era para o compartilhamento de dados fiscais

 

A Lei Complementar 208/24 introduziu alterações significativas no artigo 198 do Código Tributário Nacional (CTN), transformando radicalmente o panorama do compartilhamento de dados fiscais sigilosos no Brasil. Essas mudanças não apenas facilitam o processo de Securitização da Dívida Pública, mas também ampliam substancialmente o escopo e a eficácia das atividades de cobrança e investigação patrimonial realizadas pelos Entes Públicos.

 

A inclusão dos parágrafos 4º e 5º no artigo 198 do CTN representa uma mudança paradigmática na abordagem do sigilo fiscal no país. Estas alterações vão além de uma mera sugestão de facilitação no compartilhamento de dados; elas estabelecem efetivamente a obrigatoriedade do compartilhamento de informações consideradas sigilosas, mediante requisição, criando exceções significativas ao dever de sigilo fiscal. Para melhor elucidação transcreve-se os parágrafos supramencionados:

 

Art. 198. Sem prejuízo do disposto na legislação criminal, é vedada a divulgação, por parte da Fazenda Pública ou de seus servidores, de informação obtida em razão do ofício sobre a situação econômica ou financeira do sujeito passivo ou de terceiros e sobre a natureza e o estado de seus negócios ou atividades.

(…)

          • Sem prejuízo do disposto no art. 197, a administração tributária poderá requisitar informações cadastrais e patrimoniais de sujeito passivo de crédito tributário a órgãos ou entidades, públicos ou privados, que, inclusive por obrigação legal, operem cadastros e registros ou controlem operações de bens e direitos. 
          • Independentemente da requisição prevista no § 4º deste artigo, os órgãos e as entidades da administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes colaborarão com a administração tributária visando ao compartilhamento de bases de dados de natureza cadastral e patrimonial de seus administrados e supervisionados.    

 

A presentes alterações trouxeram para o sistema as seguintes imposições: 

 

a) Obrigatoriedade do Compartilhamento – A nova legislação não apenas permite, mas efetivamente obriga o fornecimento de dados fiscais sigilosos mediante requisição. Isso representa uma mudança significativa na dinâmica do acesso a informações fiscais, potencialmente acelerando e simplificando processos de investigação e cobrança.

b) Ampliação do Alcance – Diferentemente de legislações anteriores, como a LC 199/23, as novas disposições alcançam não apenas entidades públicas, mas também entidades privadas. Isso expande significativamente o universo de informações potencialmente acessíveis à administração tributária. 

c) Colaboração Obrigatória entre Órgãos Públicos – O parágrafo 5º institui a colaboração como um ato obrigatório entre todos os órgãos e entidades da administração pública direta e indireta, de qualquer dos poderes. Isso cria um ambiente de compartilhamento de informações sem precedentes no âmbito da administração pública brasileira.

 

O compartilhamento ampliado de dados entre os Entes da Federação será crucial para a avaliação do potencial de pagamento das dívidas que serão objeto da Securitização. Com acesso a informações mais abrangentes e detalhadas, os entes públicos poderão realizar análises de risco mais precisas, potencialmente aumentando a atratividade e a eficácia das operações de cessão de direitos creditórios.

 

Para além da Securitização, toda a atividade de cobrança e busca de bens realizada pelos Entes Públicos será significativamente facilitada por essa medida. A capacidade de acessar e cruzar informações de diversas fontes, tanto públicas quanto privadas, promete revolucionar a eficiência das ações de recuperação de créditos tributários.

 

Embora essas alterações representem um avanço significativo para a administração tributária, elas também suscitam questões importantes sobre privacidade e proteção de dados pessoais. A ampliação do acesso a informações sigilosas deve ser equilibrada com medidas robustas de segurança da informação e controles rigorosos para prevenir abusos ou vazamentos de dados.

A implementação efetiva dessas novas disposições provavelmente enfrentará desafios técnicos e operacionais significativos. A integração de sistemas de informação entre diferentes órgãos e entidades, a padronização de formatos de dados e a criação de protocolos seguros de compartilhamento são apenas alguns dos obstáculos que precisarão ser superados.

 

Conclusão

 

A Lei Complementar 208/24 representa um marco significativo na evolução do sistema jurídico brasileiro, introduzindo mudanças substanciais tanto na Lei 4.320/64 quanto no Código Tributário Nacional. Essas alterações têm o potencial de transformar profundamente a gestão das finanças públicas e a relação entre o fisco e os contribuintes.

 

A autorização para a securitização da dívida pública oferece aos entes federativos uma nova ferramenta para a gestão de seus créditos, potencialmente melhorando sua situação financeira. Por outro lado, as mudanças no prazo prescricional e no compartilhamento de dados fiscais sigilosos fortalecem significativamente a posição do fisco na cobrança de dívidas tributárias, trazendo pontos de atenção para o contribuinte.

 

Essas inovações, embora promissoras em termos de eficiência fiscal, também suscitam questões importantes sobre o equilíbrio entre os interesses do Estado e os direitos dos contribuintes. A implementação bem-sucedida dessas medidas dependerá de uma abordagem cuidadosa que respeite os princípios de transparência, devido processo legal e proteção de dados pessoais.

 

Em última análise, a LC 208/24 marca o início de uma nova era no Direito Financeiro e Tributário brasileiro, cujos impactos completos só serão plenamente compreendidos com o passar do tempo e a aplicação prática dessas novas disposições. Para maiores informações e publicações relacionadas com direito societário, tributário, startups, empresas de base tecnológica e studios de games, fique conectado no site e nas redes sociais da Caputo Duarte Advogados.

 

 

 


*Otávio Ronchi – Advogado da Caputo Duarte Advogados, Mentor em programas de empreendedorismo como Tecnopuc e PreCapLab – Dimas Ventures, possui  LLM em Direito e Processo Tributário (FMP). Pós Graduado em Direito Digital e Proteção de Dados (EBRADI). MBA, em andamento, em Planejamento Tributário e Gestão de Operações Societárias (FBT).  Coordenador do Grupo de Estudos: “Direito das Startups e Inovação” da Escola Superior da Advocacia (ESA/RS).

 


 

Referências

1Lei nº 5.172 de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional).

2Processo em que um ente vende seus direitos de receber pagamentos futuros (como dívidas) para investidores, transformando essas dívidas em títulos negociáveis. Ou seja, converte dívidas em investimentos para a obtenção de dinheiro de forma imediata.

 

 

 

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