* Maria Thereza Henriques
Introdução
A influência das inovações tecnológicas nos últimos anos tem impactado profundamente o Direito, promovendo sua modernização, a criação de novos regimes de trabalho e a adaptação dos tribunais para oferecer soluções mais eficazes para casos polêmicos. A crescente digitalização das relações interpessoais e comerciais trouxe desafios jurídicos inéditos, exigindo novas abordagens regulatórias.
Diante desse cenário, torna-se essencial refletir sobre a interseção entre Direito e tecnologia, especialmente no que tange ao Direito da Personalidade. A realidade digital pode levar a alterações comportamentais que ameaçam a autonomia individual e impõem desafios jurídicos e éticos, tornando necessário um olhar crítico sobre a forma como a tecnologia pode comprometer os direitos da personalidade e reduzir a autodeterminação das relações humanas, comprometendo direitos fundamentais.
A Despersonalização da Personalidade e os Contratos Digitais
O fenômeno que denominamos “despersonalização da personalidade” manifesta-se como uma erosão gradual dos atributos essenciais que compõem os direitos da personalidade, protegidos pelos artigos 11 a 21 do Código Civil brasileiro. Este processo ocorre quando a tecnologia reduz a individualidade do sujeito e limita sua capacidade de autodeterminação. Um dos exemplos mais evidentes dessa dinâmica são os contratos digitais, especialmente os contratos de adesão e os smart contracts.
Os smart contracts são programas de computador que executam automaticamente acordos contratuais quando condições pré-determinadas são atendidas, utilizando tecnologia blockchain para garantir imutabilidade e descentralização.
Segundo Savelyev (2017), podem ser definidos como:
“um programa de computador que utiliza uma rede blockchain para executar e fazer cumprir acordos entre partes sem necessidade de intermediários”
Também são acordos digitais baseados em códigos e algoritmos, armazenados em blockchain, que executam automaticamente suas condições sem interferência humana. Como descrito por Divino (2018):
“Negócio jurídico unilateral ou bilateral, quase inviolável, imperativo, previamente pactuado escrita ou verbalmente, reduzido à linguagem computacional apropriada (algoritmos) e expresso em um termo digital...”
A principal característica desses contratos é sua imutabilidade, ou seja, uma vez que são formalizados em código, não podem ser alterados ou reinterpretados facilmente. Essa rigidez reduz a flexibilidade das relações contratuais tradicionais e elimina a possibilidade de revisão equitativa, o que pode levar a injustiças na relação entre as partes, sobretudo quando há assimetria de informações ou desigualdade de poder entre os contratantes.
Capitalismo de Vigilância e a Expropriação da Personalidade
Outro aspecto relevante na interseção entre Direito e tecnologia é o chamado “capitalismo de vigilância”, conceito cunhado por Shoshana Zuboff para descrever um modelo econômico baseado na coleta massiva de dados pessoais para fins comerciais. Nesse contexto, experiências humanas são convertidas em dados comportamentais e vendidos para empresas que utilizam essas informações para prever e influenciar o comportamento dos usuários.
Essa prática transforma indivíduos em meros conjuntos de algoritmos, despojando-os de sua singularidade e explorando suas preferências e decisões de forma automatizada. A utilização indiscriminada de dados pessoais reduz a autonomia individual e reforça um modelo de sociedade no qual a privacidade se torna um luxo acessível apenas a poucos.
Nessa lógica, os direitos da personalidade, garantidos pelos artigo 11 a 21 do Código Civil, especialmente os direitos à privacidade, à imagem e à intimidade, tornam-se “absolutamente disponíveis”, permitindo a limitação da autonomia humana por influências externas, muitas vezes sem que o próprio indivíduo perceba a extensão desse controle. Além disso, a exploração de dados pessoais vai além do conteúdo escrito ou visual, alcançando metadados como padrões de respiração, entonação e interações digitais, permitindo prever comportamentos e induzir decisões sem consentimento explícito.
Constitucionalismo Digital
O constitucionalismo digital surge como um novo paradigma para garantir direitos fundamentais no ambiente virtual. Ele engloba princípios como privacidade, liberdade de expressão e proteção de dados pessoais, buscando adaptar os direitos constitucionais à realidade digital e criar mecanismos de proteção contra abusos tecnológicos.
Com o aumento exponencial do uso de tecnologias, a discussão sobre regulação se tornou essencial. No Brasil, diversas iniciativas legislativas têm buscado regulamentar a Inteligência Artificial, destacando-se o Projeto de Lei 21/2020, que estabelece o marco legal para o uso da Inteligência Artificial no Brasil e encontra-se em tramitação no Congresso Nacional, propondo diretrizes que incluem::
- Definição de que a competência para legislar sobre IA é privativa da União, evitando a fragmentação regulatória;
- Criação de regulações setoriais sob responsabilidade de órgãos reguladores e bancos centrais, promovendo maior segurança jurídica;
- Monitoramento de riscos associados a sistemas de IA, prevenindo potenciais danos à sociedade e aos indivíduos.
Paralelamente, a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD), Lei 13.709/2018, já estabelece importantes salvaguardas para os direitos da personalidade no ambiente digital, criando princípios como finalidade, adequação e necessidade no tratamento de dados pessoais.
Embora avanços legislativos sejam bem-vindos, a efetividade dessas normas ainda depende da implementação de mecanismos que garantam a proteção dos indivíduos contra abusos e manipulações digitais. Além disso, a regulamentação precisa equilibrar a proteção da privacidade e da autonomia individual com a promoção da inovação e do desenvolvimento tecnológico.
Considerações Finais
O avanço da tecnologia traz implicações significativas para o Direito, exigindo uma abordagem mais refinada para proteger a autonomia individual e os direitos da personalidade. O processo de despersonalização, aqui compreendido como a erosão dos direitos fundamentais da pessoa humana no ambiente digitalimpulsionado pelo uso indiscriminado da tecnologia, representa um desafio para o modelo jurídico tradicional, que precisa ser adaptado à nova realidade digital.
A adoção de mecanismos regulatórios eficazes, aliada ao fortalecimento do debate intersetorial entre juristas, legisladores e especialistas em tecnologia, é fundamental para enfrentar os desafios do constitucionalismo digital. Além disso, é essencial garantir que a inovação tecnológica ocorra de forma ética e responsável, minimizando os impactos negativos da digitalização sobre os direitos individuais e coletivos.
O constitucionalismo digital deve se consolidar como um instrumento de proteção da dignidade humana na era tecnológica, garantindo que a evolução digital não ocorra em detrimento dos direitos fundamentais dos cidadãos.
*Maria Thereza Henriques, advogada júnior no Caputo Duarte Advogados Associados, assessoria empresarial full service com ênfase em Startups e Estúdios de Games. Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Pós Graduanda em Direito Privado, Tecnologia e Inovação pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI).
Referências
BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de Dados Pessoais: A Função e os Limites do Consentimento. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2019.
COTS, Marcio; OLIVEIRA, Ricardo. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais Comentada. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2018.
DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Teoria Geral do Direito Civil. vol. 1, 35 ed. São Paulo: Saraiva, 2018.
LEMOS, Ronaldo; SOUZA, Carlos Affonso. Marco Civil da Internet: Jurisprudência Comentada. São Paulo: Lúmen Juris 2018.
MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti (Coord.). Direito digital: direito privado e internet. 2. ed. Indaiatuba: Foco, 2019
SAVELYEV, Alexander. Contract law 2.0: Smart contracts as the beginning of the end of classic contract law. Information & Communications Technology Law, v. 26, n. 2, p. 116-134, 2017.
ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.