Contratos atípicos e liberdade econômica: importância da elaboração de contratos detalhistas

Sumário

* Rafael Duarte

 

Dentre as diversas formas de classificação dos contratos, é possível distingui-los em função da sua tipicidade (existência ou não de fundamentação legal expressa). Disso se extrai, portanto, que uma das formas de se organizar as espécies contratuais consiste em separá-las em modalidades contratuais com previsão legal expressa (contratos típicos) e modalidades contratuais sem previsão legal expressa (contratos atípicos)1.

Os contratos típicos, portanto, são aqueles em que os “direitos e obrigações dos contratantes estão, em parte, pelo menos, disciplinados na lei, por normas cogentes ou supletivas”2. Dessa forma, as cláusulas constantes do instrumento celebrado pelas partes para formalizar um contrato típico deverão: ou amparar-se nas regras legalmente impostas para aquela relação jurídica, ou, pelo menos, não conflitar com as normas consideradas cogentes e inafastáveis para aquela espécie contratual. Como integrantes do grande grupo de contratos típicos, podem ser mencionados os contratos de: compra e venda (arts. 481-532, CC), doação (arts. 538-564, CC) e locação (arts. 565-578, CC; Lei Federal nº 8.245/91 para imóveis urbanos e Estatuto da Terra, para locações rurais).

A modalidade atípica de contratação, por sua vez, é admitida no nosso ordenamento jurídico pelo art. 425 do Código Civil, o qual prevê ser “[…] lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.” Referidas “normas gerais” devem ser entendidas como as normas de ordem pública, dentre as quais destacam-se os princípios da função social do contrato e da boa-fé objetiva3, que estão previstos respectivamente nos arts. 421 e 422 do Código Civil. Ou seja, são preceitos fundantes e igualmente aplicáveis a contratos típicos e atípicos.

A possibilidade de celebração de contratos atípicos encontra suporte na compreensão fundamental dos contratos e ajustes de vontades como manifestação por excelência da autonomia privada. Justamente por conta dessa característica, é imanente à própria atividade legislativa “olhar para trás” e, diante das inovações trazidas pelas pessoas em suas relações negociais, legislar regulamentando vínculos contratuais já celebrados anteriormente. Ou seja, o mundo negocial cria e a legislação formaliza com base em criações passadas.

Na prática, isso significa dizer que todo contrato atualmente típico, eventualmente, foi considerado atípico, haja vista tratar-se de consectário da criatividade humana e da sua vontade contínua de desenvolver novas relações contratuais que tenham o condão de atender a seus interesses patrimoniais e extrapatrimoniais. Portanto, seria inócua a pretensão de pleno exaurimento legislativo de tais relações, “uma vez que sempre existiriam determinados contratos não previstos em lei – os denominados contratos atípicos.” 4

Como exemplos de contratos atípicos, atualmente, há os contratos de publicidade, excursão turística, fornecimento, serviços de bufê, manutenção de equipamentos e diversas espécies de contratos bancários. Como característica em comum entre todos eles – como visto –, observa-se a inexistência de lei específica regulando referida relação jurídico-contratual. 

 

Contratos Atípicos e Liberdade Econômica: 

Com o advento da Medida Provisória nº 881/2019 – que ficou conhecida como a MP da Liberdade Econômica – e, posteriormente, com a sua conversão em lei (Lei Federal nº 13.784/2019), foram realizadas alterações bastante significativas no tratamento legal conferido às relações contratuais no nosso sistema. Historicamente, o dirigismo contratual e a intervenção estatal – especialmente por intermédio do Poder Judiciário – em relações contratuais sempre se mostraram recorrentes.

Diante disso, com o início da vigência da Lei da Liberdade Econômica (Lei n. 13.784/2019), instituiu-se o que se denomina Princípio da Intervenção Mínima nos Contratos, expressamente albergado pelo parágrafo único do art. 421 do Código Civil. Isto é, à exceção dos contratos que possuem evidentes elementos de discrepância entre as partes contraentes – como se constata nos contratos trabalhistas e nos contratos consumeristas, em que as respectivas leis especiais (CLT e Código de Defesa do Consumidor) devem prevalecer, como forma de equilibrar relações materialmente desiguais –, a regra passa a ser o prestígio à vontade livre dos contratantes.

Por conseguinte, em relações contratuais paritárias, há de se preservar o caráter excepcional da intervenção estatal na relação jurídica, uma vez que deverá incidir a pressuposição de equilíbrio de forças entre as partes, de modo que se suporá ter sido o ajuste contratual final elaborado em conformidade com aquilo que os negociantes pretendiam estipular. 

O elemento de paridade é essencial para o fim de assegurar a prevalência da autonomia privada, tendo em vista que esta possui como pilar de sustentação a liberdade plena dos contraentes, cujo exercício consiste em definir voluntariamente quando, com quem e como contratar. Se, porventura, houver algum desequilíbrio de forças no processo negocial, a tendência é que “o mais forte acabará fazendo prevalecer seus interesses, e não se realizará a articulação de interesses amparada na autonomia privada.” 5

Desde que se esteja, sim, diante de uma relação contratual paritária, a hermenêutica contratual dessas relações deve sempre ser norteada, primordialmente, pelos novos ditames impostos no art. 421-A do Código Civil – inserido pela Lei da Liberdade Econômica –, cujo teor abaixo se transcreve:

Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que: 

I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução

II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e

III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada (grifou-se).

 

Esse novo arcabouço interpretativo é essencial para compreender a maneira correta de assimilar o conteúdo clausular dos contratos atípicos. Como visto na parte inicial deste artigo, os referidos contratos são expressões em concreto da vontade contratual de partes livres e desimpedidas; isto é, desde que haja efetiva observância de paridade entre os contratantes, considerando a ausência de ditames legais para regular o ajuste de vontades que as partes pretendem desenvolver, é inegável que a liberdade contratual deve ser o critério fundamental de interpretação.

Nesse momento, portanto, o trabalho dos advogados contratualistas que atuarem na tutela dos interesses das partes envolvidas nesses negócios jurídicos toma maior importância do que em contratos típicos usuais. Essa exigência técnica adicional provém do fato de que o contrato atípico não possui a lei como suporte, nem para suprimento de lacunas, nem como inspiração para formulação do clausulado. Significa, portanto, que será um trabalho intelectual desenvolvido desde a fundação da relação contratual, até detalhes e minúcias desse inédito ajuste de vontades.

A despeito da impossibilidade prática de se exaurir toda e qualquer intercorrência futura dessa relação contratual, conclui-se, como forma de se restringir a intervenção estatal no contrato – e, assim, privilegiar e preservar a autonomia privada dos contratantes –, ser indispensável que o instrumento se proponha a regular todos os detalhes previsíveis relativos à execução do contrato. Faz-se essa ressalva, porque, caso haja alguma omissão no instrumento contratual e essa omissão conduzir a litígio cuja resolução não tenha sido prevista pelo próprio contrato, não sendo encontrada uma solução dialogada pelas partes (autocomposição), a única alternativa remanescente será a heterocomposição (decisão tomada por terceiro imparcial), seja por intermédio de um árbitro ou câmara arbitral, seja por intermédio do Poder Judiciário

O legislador, ciente da importância de um contrato paritário bem redigido e o mais completo possível – dentro das possibilidades jurídicas e fáticas –, fez introduzir os incisos I, II e III ao art. 421-A não como disposições de “estilo” sem valor interpretativo; há razões concretas para a sua inserção no Código Civil. Relembra-se, aqui, ser inadequado presumir palavras supérfluas ou inúteis na Lei, sob pena de acabar esvaziando a própria atividade de interpretação jurídica6.

Dos três incisos do art. 421-A do Código Civil, cumpre destacar dois principais elementos a serem observados: a) a estipulação, pelas próprias partes, de critérios interpretativos; e b) a alocação de riscos definida em contrato.

O primeiro elemento é, justamente, a possibilidade de as próprias partes definirem os critérios de interpretação do contrato. Como se sabe, o Direito não é uma ciência exata, comportando diversos pontos de vista a partir da mesma ocorrência ou conflito de interesses. Por isso, cientes dessa relatividade ínsita à hermenêutica jurídica, podem as partes definir, de comum acordo, como será realizada a interpretação das cláusulas contratuais em caso de eventual litígio. Essas regras interpretativas poderão ser voltadas tanto para solucionar conflitos de interpretação, bem como para a chamada atividade de “colmatação” de lacunas; isto é, como proceder quando o contrato disser menos do que deveria, mostrando-se omisso em relação a determinada questão

O segundo elemento consiste na aptidão das partes de definirem a alocação dos riscos decorrentes da execução contratual entre os contratantes. Esse elemento encontra grande relevância dentro do contexto recente: a imprevisibilidade da pandemia do coronavírus (COVID-19) é fato incontroverso, assim como a sua potencialidade de produzir reflexos nocivos a relações contratuais celebradas antes do seu surgimento. Em que pese a sempre indispensável análise casuística – nunca abstrata – dos danos causados pela pandemia e pelas restrições impostas pelo Poder Público7, o Código Civil deixa clara a possibilidade de as próprias partes regularem as consequências de eventos futuros – ainda que imprevisíveis –, de modo a, com isso, minorar a possibilidade de intervenção jurisdicional no contrato (inciso III do art. 421-A, CC).

Explicado isso, imagine o seguinte cenário: realizadas diversas negociações preliminares, as partes resolvem, em um contrato de fornecimento de determinado serviço/produto, estabelecer que, ao fornecedor, não caberá se desincumbir da obrigação contratualmente assumida, ainda que o cumprimento se torne física ou juridicamente impossível por conta de força maior ou caso fortuito. Isto é, não obstante a Lei possa afastar a mora do devedor cuja obrigação se tornou impossível por evento imprevisível e alheio à sua atuação – comissiva ou omissiva – das partes, por conta da livre aptidão à alocação de riscos entre os contratantes, pode o fornecedor renunciar ao direito de arguir caso fortuito ou força maior.

Cumpre salientar, neste ponto, o fato de que o contrato é a manifestação por excelência da liberdade contratual, de modo que, não havendo vício de consentimento ou vício social, não sendo violada norma de ordem pública, bem como tendo ficado caracterizada a natureza paritária da relação jurídica, é seguro concluir que as partes podem, sim, distribuir de modo voluntário os riscos relativos à contratação.

No presente artigo, pretendeu-se demonstrar como os contratos atípicos conferem aos contratantes significativa liberdade na celebração dos seus ajustes de vontade, razão pela qual o acompanhamento de departamentos jurídicos especializados na seara contratual possui o condão de, inclusive, regular as consequências contratuais decorrentes de eventos inicialmente imprevistos, mediante a alocação de riscos de forma consensual e equilibrada. Com isso, podem ser conferidas duas vantagens da maior importância aos contratantes empresários: previsibilidade e segurança jurídica

 

Para maiores informações sobre Direito Societário e Startups, acompanhe nossas postagens e aguardamos comentários e dúvidas! 

 


1TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 3: Teoria geral dos contratos e contratos em espécie/ Flávio Tartuce. – 12. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 45. ISBN 978-85-309-7406-0.

2COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, volume 3: contratos/ Fábio Ulhoa Coelho. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. p. 126-127. ISBN 978-85-02-16220-4.

3TARTUCE, Flávio. Direito civil, v. 3: Teoria geral dos contratos e contratos em espécie/ Flávio Tartuce. – 12. ed. rev. atual. e ampl. – Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 45. ISBN 978-85-309-7406-0.

4GAGLIANO, Pablo Stolze. Manual de direito civil; volume único / Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho. – São Paulo: Saraiva, 2017. p. 493. ISBN 78-85-472-1677-1.

5COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito civil, volume 3: contratos/ Fábio Ulhoa Coelho. – 5. ed. – São Paulo: Saraiva, 2012. p. 74. ISBN 978-85-02-16220-4.

6MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do Direito. 16ª Ed., Forense, Rio de Janeiro, 1997. p. 251.

7SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos. Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas. Disponível em: <https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322357/devagar-com-o-andor-coronavirus-e-contratos-importancia-da-boa-fe-e-do-dever-de-renegociar-antes-de-cogitar-de-qualquer-medida-terminativa-ou-revisional. Acesso em: 21 abr. 2020.

 


*Rafael Duarte, Sócio do escritório Caputo Advogados, com atuação especializada em Empresas de Base Tecnológica e Startups. Pós-graduando em Direito Digital e Proteção de Dados; Pós-graduado em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul; Pós-graduado em Direito Negocial Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito; Pós-Graduado Direito Imobiliário pela Faculdade Legale/SP; Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale/SP; Mentor em programas de empreendedorismo e desenvolvimento de negócios inovadores, tais como Inovativa Brasil, entre outros; Membro da Comissão Direito Imobiliário da OAB/RS; Membro da Comissão de Direito Sucessório do IBDFAM/RS.

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