* Maria Thereza Henriques
Introdução
O contrato de rateio de despesas, também chamado de contrato de compartilhamento de custos ou “cost sharing agreement“, é um instrumento amplamente utilizado entre empresas de um mesmo grupo econômico. Apesar de sua relevância prática, trata-se de um contrato atípico, ou seja, não possui previsão expressa na legislação brasileira.
A essência desse contrato está na centralização de custos e despesas por uma das empresas do grupo, que realiza os pagamentos necessários, enquanto as demais empresas “reembolsam” os valores correspondentes às despesas que lhes dizem respeito. Essa estrutura é particularmente comum em grupos empresariais com operações internacionais, nos quais há a necessidade de organizar e distribuir os custos compartilhados de maneira eficiente.
No entanto, a ausência de previsão legal específica na legislação tributária gera incertezas sobre o tratamento fiscal desse tipo de contrato. Em especial, há divergências quanto à tributação dos reembolsos realizados e à possibilidade de dedução desses valores. A Receita Federal, por sua vez, busca estabelecer critérios para garantir a rastreabilidade, razoabilidade e consistência na forma como os custos são rateados entre as empresas envolvidas.
Ainda que o Código Civil, no artigo 4251, autorize a celebração de contratos atípicos, a falta de regulamentação detalhada na esfera tributária faz com que os “cost sharing agreements” sejam frequentemente questionados pelos órgãos fiscais. Diante desse cenário, é essencial que empresas que adotam essa estrutura se atentem às exigências normativas para minimizar riscos e evitar autuações.
Qual a importância desse contrato?
Nos contratos de cost sharing, é comum a figura da empresa centralizadora, responsável por reunir e administrar atividades-meio como marketing, jurídico, recursos humanos e contabilidade. Essa empresa pode ter sido criada especificamente para essa função ou apenas desempenhar esse papel dentro de um grupo econômico, garantindo suporte operacional às demais empresas envolvidas. Em contrapartida, as empresas beneficiadas por esses serviços assumem a obrigação de reembolsar sua parcela proporcional dos custos compartilhados.
É importante destacar que essa operação não se configura como uma prestação de serviços, já que não há finalidade lucrativa. O objetivo da empresa centralizadora não é faturar sobre as atividades administradas, mas sim promover a recomposição patrimonial por meio do reembolso das despesas. Assim, não pode haver cobrança de taxas ou honorários (fees) adicionais por essa centralização.
Além disso, os valores reembolsados não podem ser classificados como receita, pois não resultam no aumento do patrimônio líquido da empresa, conforme definido pelo artigo 12 do Decreto-Lei nº 1.598/77 e pelas normas contábeis (NBC TG 47/16, Apêndice A).
Os contratos de cost sharing geralmente englobam três principais operações:
- Uso compartilhado de bens ou direitos;
- Desenvolvimento de atividades-meio centralizadas, com a contratação de serviços de terceiros por uma empresa do grupo;
- Contratos de contribuição de custos, nos quais as empresas envolvidas assumem a divisão proporcional dos gastos comuns.
Dessa forma, a estrutura do contrato de cost sharing permite uma gestão mais eficiente dos recursos dentro de grupos empresariais, garantindo que cada empresa arque com sua devida parcela dos custos sem que isso configure uma operação comercial.
Histórico jurisprudencial
A solução de consulta COSIT 8/12, mostrava um primeiro entendimento da Receita Federal no sentido de que deveria ocorrer tributação e que as receitas oriundas dos contratos de compartilhamento deveriam ser tributadas visto que o reembolso de despesas configuraria outras receitas.
Já no âmbito do CARF havia precedentes favoráveis aos contribuintes, entendendo que as despesas poderiam ser deduzidas (no caso do IRPJ), conforme exemplificativamente acórdão abaixo transcrito:
CARF 1ª Seção / 2ª Turma da 4ª Câmara / ACÓRDÃO 1402-00217 em 06/07/2010
ASSUNTO: IMPOSTO SOBRE A RENDA DE PESSOA JURÍDICA – IRPJ
EMENTA Exercício: 2002, 2003, 2004, 2005 IRPJ. EMPRESAS DE UM MESMO GRUPO ECONÔMICO. DESPESAS COMPARTILHADAS. DEDUTIBILIDADE.
Tratando-se de coligadas, uma vez reconhecido que os serviços contratados em conjunto são relacionados às atividades ou à manutenção de sua fonte produtora de ambas, e foram devidamente comprovados, correta a dedutibilidade mediante rateio.
Tributação no Cost Sharing: Reembolso ou Receita?
A solução de consulta COSIT 23/13 estabeleceu critérios para a dedução das despesas nos contratos de cost sharing. De acordo com essas diretrizes, é possível concentrar o controle dos gastos administrativos em uma única empresa para posterior rateio entre as demais, desde que sejam observadas as seguintes condições:
- Os custos e despesas devem ser necessários, normais e usuais, devidamente comprovados e pagos;
- O rateio deve seguir critérios razoáveis e objetivos, previamente ajustados e formalizados em contrato;
- Os valores devem corresponder ao efetivo gasto de cada empresa e ao custo global pago pelos bens e serviços.
- A empresa centralizadora deve registrar como despesa apenas a parcela que lhe cabe, enquanto as demais empresas devem contabilizar suas respectivas partes como direitos de crédito a recuperar. Além disso, é essencial manter escrituração destacada de todos os atos relacionados ao rateio das despesas.
Entretanto, apesar dessas diretrizes da Receita Federal, o CARF pode decidir de forma contrária e entender que há incidência de tributos sobre esses contratos. A Solução de Consulta COSIT 43/15, por exemplo, determinou a incidência da CIDE sobre remessas ao exterior no âmbito de contratos de cost sharing. Já em 2016, a Receita Federal, por meio da Solução de Consulta COSIT 50/16, reconheceu a incidência da Cofins-Importação e do PIS-Importação.
Essa questão voltou a ser debatida em maio de 2022, quando a 3ª Turma da CSRF do CARF, no acórdão 9303-012.980, decidiu que os valores envolvidos no cost sharing configuravam receita de prestação de serviços para a empresa centralizadora, sujeitando-os à incidência da contribuição ao PIS e da Cofins.
Há considerável discordância dessa interpretação, pois a operação de cost sharing se baseia exclusivamente em reembolsos entre empresas, sem que haja obtenção de lucro. Assim, não há justificativa para a incidência tributária sobre esses valores.
Turmas ordinárias do CARF têm adotado decisões mais recentes no sentido de que os valores recebidos a título de reembolso não devem ser considerados receita tributável para fins de PIS e Cofins. Essa interpretação é reforçada pela legislação vigente, especialmente o artigo 1º, §1º da Lei 10.637/02 e da Lei 10.833/03, que excluem da base de cálculo das contribuições os valores recebidos a título de reembolso de despesas comuns entre empresas do mesmo grupo econômico.
Assim, concluímos que, respeitados os critérios formais do rateio, os valores reembolsados à empresa centralizadora não devem ser tributados, pois não configuram receita.
Cost Sharing na Contabilidade e os Impactos da Reforma Tributária
Como vimos, as normas contábeis brasileiras (CPCs e resoluções) e as normas internacionais de contabilidade (IFRS) não possuem um pronunciamento específico sobre Cost Sharing, mas o conceito é analisado dentro do contexto de compartilhamento de custos entre empresas de um mesmo grupo econômico.
O compartilhamento de custos impacta diretamente a contabilidade das empresas envolvidas, pois os valores compartilhados são tratados, de um lado, como despesas e, de outro, como receitas, compondo a apuração do lucro líquido (§ 1º, alíneas ‘a’ e ‘b’, do art. 187, e art. 177, ambos da Lei 6.404/76).
Na esfera tributária, aplicam-se as regras de dedutibilidade de despesas operacionais (art. 311 do Decreto 9.580/18) e a classificação dos valores recebidos pela centralizadora como “outras receitas operacionais”.
Portanto, o adequado registro contábil das operações de rateio e dos valores ressarcidos à empresa centralizadora é essencial. Essa documentação serve como evidência para demonstrar que tais receitas não fazem parte da atividade principal da empresa e, consequentemente, devem ser tratadas de maneira distinta na apuração dos tributos.
A reforma tributária, atualmente em andamento, pode afetar a tributação sobre as operações de Cost Sharing, especialmente na tributação indireta sobre receitas e faturamento. O PL 68/24, em seu art. 5º, prevê novas hipóteses de incidência do IBS e da CBS, abrangendo operações “não onerosas” e fornecimento de bens e serviços abaixo do valor de mercado.
Embora ainda haja necessidade de regulamentação detalhada, é possível que o compartilhamento de custos entre empresas de um mesmo grupo seja afetado, principalmente no que diz respeito à composição da base de cálculo dos novos tributos. A definição clara do tratamento contábil e fiscal dessas operações será fundamental para evitar autuações e garantir a conformidade com a nova legislação.
Conclusão
Diante do cenário atual, os contratos de cost sharing representam uma estratégia essencial para a otimização de recursos em grupos econômicos, especialmente no contexto de empresas de base tecnológica. No entanto, sua implementação requer rigorosa atenção aos aspectos formais e documentais. As empresas devem estar preparadas para:
- Documentar detalhadamente todos os critérios de rateio
- Manter escrituração contábil transparente e rastreável
- Acompanhar ativamente as mudanças na legislação tributária, especialmente com a reforma tributária em curso
A complexidade tributária desses contratos exige não apenas conformidade legal, mas uma abordagem proativa de planejamento tributário. A chave para o sucesso está na combinação de rigor documental, clareza nos critérios de compartilhamento e compreensão profunda das nuances regulatórias em constante evolução.
Quer saber mais? Agenda uma consulta
*Maria Thereza Henriques, advogada júnior no Caputo Duarte Advogados Associados, assessoria empresarial full service com ênfase em Startups e Estúdios de Games. Bacharela em Direito pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB), Pós Graduanda em Direito Privado, Tecnologia e Inovação pela Escola Brasileira de Direito (EBRADI).
Referências
COIMBRA, Moises Rodrigues. Cost Sharing (aspectos tributários) e a reforma tributária. Migalhas, 2025. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/422881/cost-sharing-aspectos-tributarios-e-a-reforma-tributaria. Acesso em: 27 fev. 2025.
TAXCEL. Contrato de rateio de despesas: aspectos tributários. Blog Taxcel, 27 fev. 2023. Disponível em: https://blog.taxceladdins.com.br/contrato-de-rateio-de-despesas-aspectos-tributarios/. Acesso em: 28 fev. 2025.
SAP CONCUR. Rateio de despesas: o que é e quais os benefícios. Concur, 19 ago. 2024. Disponível em: https://www.concur.com.br/blog/article/rateio-de-despesas. Acesso em: 28 fev. 2025.
1Art. 425. É lícito às partes estipular contratos atípicos, observadas as normas gerais fixadas neste Código.