*Luckas Gaioni Loures
Introdução
Em um cenário onde a interatividade e a cocriação são cada vez mais valorizadas, os conteúdos gerados por usuários (User Generated Content – UGC) tem se tornado um elemento fundamental na indústria de jogos digitais.
A revolução dos conteúdos gerados por usuários têm transformado significativamente a maneira como interagimos com os jogos digitais. Esta nova dinâmica traz consigo importantes questões jurídicas que precisam ser compreendidas tanto por desenvolvedores quanto por jogadores.
Definição e importância do UGC
A definição dos conteúdos gerados por usuários se delimitam em toda e qualquer forma de conteúdo criado pelos players no ambiente do jogo ou em relação a ele. Esta definição abrange uma ampla gama de criações, desde modificações no código do jogo (mods), até conteúdos artísticos e personalizações estéticas.
O impacto do UGC na indústria é, por sua vez, multifacetado e substancial, uma vez que do ponto de vista econômico, esses conteúdos podem prolongar significativamente a vida útil de um jogo, criando um ecossistema vibrante de criação e compartilhamento entre os jogadores. Para ilustrar, pode-se observar casos emblemáticos como:
- Minecraft: Um exemplo clássico, onde os jogadores criam mundos inteiros, texturas personalizadas e mods que expandem significativamente o jogo base. A comunidade de criadores contribui decisivamente para o sucesso duradouro desse título.
- The Sims: A série tem uma robusta comunidade de criadores que desenvolvem itens personalizados, desde roupas, ações dos personagens, até mobiliário, enriquecendo significativamente a experiência do jogo.
- Counter-Strike1: Este jogo mundialmente conhecido, originalmente era um mod do jogo Half-Life, e tornou-se um o sucesso notável de hoje, demonstrando o poderoso potencial transformador do UGC.
Destaca-se, portanto, que o UGC representa uma forma única de engajamento que beneficia tanto desenvolvedores quanto jogadores. Em que pese às empresas, esses conteúdos podem proporcionar:
- O aumento de vida do produto;
- O fortalecimento da comunidade ao redor do jogo;
- Redução dos custos para o desenvolvimento de novos conteúdos dentro do jogo; e
- O oferecimento de insights valiosos sobre a aderência e preferências dos players.
De outro lado, os jogadores também são beneficiados, considerando que o UGC oferece maior personalização da experiência de jogo e uma oportunidade de expressão criativa, possibilitando o reconhecimento dentro da comunidade e, até mesmo, a potencial monetização de suas criações
Essa dinâmica colaborativa entre desenvolvedores e jogadores, materializada como UGC, tem revolucionado a indústria dos jogos, mas também trouxe consigo importantes questões jurídicas que precisam ser cuidadosamente consideradas e gerenciadas, a fim de evitar possíveis atritos judiciais.
Cláusulas de direitos autorais em EULAS e termos de serviço
A gestão dos direitos autorais nesses conteúdos gerados por usuários (UGC) é regulamentada, principalmente, através dos Termos de Serviço e Contratos de Licença de Usuário Final (EULAs) dos jogos. Estes documentos estabelecem as regras fundamentais que governam a criação, uso e distribuição destes conteúdos.
As cláusulas que definem a propriedade do conteúdo gerado por usuários são elementos cruciais nos acordos legais dos jogos e, geralmente, estas disposições seguem dois modelos principais, vistos a seguir.
O primeiro modelo permite que os usuários mantenham a propriedade de suas criações, concedendo à desenvolvedora uma licença ampla de uso. Por exemplo, o Minecraft adota esta abordagem, permitindo que os criadores de mods mantenham seus direitos autorais, enquanto concedem à Mojang uma licença não exclusiva para utilizar e distribuir o conteúdo.
O segundo modelo estabelece que todo conteúdo criado dentro do jogo se torna propriedade da desenvolvedora. Esta abordagem é comum em jogos como World of Warcraft, onde a Blizzard mantém direitos exclusivos sobre qualquer conteúdo gerado dentro de sua plataforma.
O licenciamento do conteúdo gerado por usuários representa um aspecto fundamental na gestão dos direitos autorais. As cláusulas de licenciamento típicas que podem ser abordadas nas EULAs devem incluir uma definição clara do escopo da licença concedida, a especificação dos direitos de uso e distribuição de conteúdo, o estabelecimento de condições para monetização dessas criações e a delimitação clara das restrições de uso.
Um exemplo notável da utilização inteligente do EULAs é encontrado nos termos do Roblox, que estabelece um sistema de licenciamento que permite aos criadores monetizar seus conteúdos enquanto mantém os direitos necessários para a operação da plataforma. Essa abordagem equilibrada resulta em um ecossistema mais saudável e sustentável, onde tanto a plataforma quanto os criadores de conteúdo podem prosperar, reduzindo significativamente potenciais conflitos jurídicos e estimulando a inovação contínua no desenvolvimento de novos conteúdos
Além disso, os procedimentos de remoção de conteúdo e conformidade com o Digital Millennium Copyright Act (DMCA)2 são elementos essenciais na proteção dos direitos autorais. As plataformas de jogos, para seguir essas diretrizes, precisam estabelecer:
- Processos claros para notificação de terceiros em caso de violação de direitos autorais;
- Procedimentos para contestação e requerimento de remoções dos respectivos conteúdos;
- Prazos para resposta destes requerimentos e o sistema de ação adotado pela desenvolvedora; e
- Consequências para violações, infrações e reincidências registradas.
Desafios legais na gestão de UGC
Como explorado anteriormente, a administração de direitos autorais em conteúdos gerados por usuários apresenta diversos desafios significativos para a indústria de jogos. Entre as adversidades frequentemente encontradas na gestão de UGC, destacam-se:
A Apropriação Indevida de Propriedade Intelectual com o uso não autorizado de conteúdo protegido por direitos autorais em criações de usuários representa um desafio constante. Por exemplo, casos das skins em jogos que reproduzem personagens protegidos por direitos autorais de terceiros.
Potenciais Disputas de Titularidade, englobando conflitos sobre a propriedade das criações, especialmente em projetos colaborativos ou quando há modificações substanciais de conteúdo existente, são recorrentes no universo dos jogos.
Por fim, a Monetização e Distribuição, que traz problemáticas relacionadas à comercialização de UGC e à distribuição de receitas entre criadores e plataformas, o que, frequentemente, dá causa às disputas legais.
Casos legais relevantes
Focando no cenário jurídico relacionado ao UGC, o tema tem sido marcado por casos emblemáticos de gigantes da indústria, que ajudaram a estabelecer precedentes importantes para que entendesse a extensão do assunto. Dos principais, expõem-se os seguintes processos:
Marvel vs. NCSoft (City of Heroes)3: Este caso estabeleceu importantes precedentes sobre a responsabilidade das desenvolvedoras em relação ao conteúdo gerado por usuários que potencialmente viola direitos autorais de terceiros.
Blizzard vs. MDY Industries4: O litígio envolvendo o programa Glider para World of Warcraft ajudou a definir os limites legais das modificações de software em jogos online.
A complexidade destes desafios tem levado ao desenvolvimento de práticas mais sofisticadas de gestão de direitos autorais, incluindo a implementação de sistemas automatizados de detecção de violações, o desenvolvimento de políticas mais claras e abrangentes, a criação de mecanismos mais eficientes de resolução de disputas e o estabelecimento de programas de parceria com criadores de conteúdo.
Estudos de caso na gestão de direitos autorais em UGC
Considerando a importância de uma análise de casos bem-sucedidos na gestão de direitos autorais em conteúdos gerados por usuários, para compreender aspectos fundamentais em como essa dinâmica funciona em uma situação de estresse em um tribunal. Várias empresas desenvolveram abordagens eficazes que merecem o destaque e análise detalhada que virá a seguir.
6.1. O Caso Minecraft
O Minecraft representa um exemplo notável da condução dessa situação, isso, pois, a Mojang Studios estabeleceu diretrizes claras que permitem aos criadores manter os direitos financeiros e morais sobre suas criações, enquanto protege a propriedade intelectual do jogo. O sistema implementado pela empresa inclui desde uma política de monetização transparente, permitindo que os criadores comercializem seus mods e conteúdos – desde que sigam determinadas diretrizes -, até um framework legal que protege, tanto os direitos dos criadores, quanto os interesses comerciais da empresa. Além disso, o estúdio estabeleceu um marketplace oficial que funciona como uma plataforma para a distribuição e compartilhamento seguro dos conteúdos gerados por usuários. Esta iniciativa não apenas incentiva a comunidade e assegura uma experiência livre de malware para nos jogadores, mas protege a propriedade intelectual dos criadores, reduzindo significativamente a distribuição não autorizada de materiais através de sites piratas.
6.2 A Abordagem do The Sims
A série The Sims desenvolveu ao longo dos anos uma das comunidades mais ativas de criadores de conteúdo, muito devido à postura da Electronic Arts em relação à criação de conteúdo. A EA implementou em seu jogo uma estrutura que forneceu ferramentas oficiais que possibilitou a produção criativa dos players, facilitando o desenvolvimento de itens personalizados, observando os parâmetros estabelecidos pela própria empresa.
Ademais, ela manteve uma política clara sobre o uso comercial de criações, permitindo, então, que criadores monetizassem seu trabalho sob condições específicas,estabelecendo um equilíbrio entre o controle de qualidade e a liberdade criativa da comunidade.
6.3. A Evolução do Roblox
Por fim, o Roblox revolucionou a abordagem do UGC ao criar um verdadeiro ecossistema completo para desenvolvedores dos conteúdos e mundos dentro do jogo. O modelo da plataforma se utiliza de um sistema robusto de compartilhamento de receita que recompensa a criação de conteúdo de qualidade. Esse modelo não apenas incentiva o desenvolvimento de materiais com um padrão de excelência, mas também permite que os criadores reinvistam seus recursos na própria plataforma, resultando em uma expansão natural de usuários e um crescimento orgânico do jogo.
Além disso, a Roblox Corporation oferece proteção jurídica adequada tanto para criadores quanto para a plataforma, mantendo, também, ferramentas de moderação eficientes visando garantir a conformidade do praticado com as diretrizes de direitos autorais estabelecidos pela empresa.
Conclusão
Desta forma, é evidente que o sucesso futuro da indústria de jogos dependerá significativamente da capacidade das empresas em desenvolver e implementar sistemas eficazes de gestão de direitos autorais e propriedade intelectual que promovam a inovação enquanto protegem os direitos de todos os envolvidos. As empresas que conseguirem estabelecer este equilíbrio estarão melhor posicionadas para prosperar no dinâmico mercado de jogos digitais.
A evolução contínua das tecnologias e práticas de desenvolvimento de conteúdo demandará uma adaptação constante das estruturas legais e sistemas da administração desses direitos. O futuro pertence às organizações que souberem se adaptar a estas mudanças enquanto mantêm um ambiente propício à criatividade e inovação.
*Luckas Gaioni Loures – Estagiário no Escritório Caputo Duarte Advogados. Graduando em Direito pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF); Atuação em projetos de pesquisa científica envolvendo a regulamentação de plataformas, inovação e inteligência artificial; Estágio no Caputo Duarte Advogados, assessoria empresarial especializada em startups e empresas de base tecnológica.
Notas e Referências
1A história de Counter-Strike. Disponível em: <https://www.techtudo.com.br/noticias/2011/08/historia-de-counter-strike.ghtml>
2O objetivo do DMCA é equilibrar os interesses dos proprietários de direitos autorais e usuários e investigar qualquer tipo de violação de direitos autorais que surja no mundo digital. Disponível em <https://www.copyrighted.com/blog/dmca-guide#google_vignette> Acesso em 03 de janeiro de 2025.
3Disponível em: <https://www.eff.org/cases/marvel-v-ncsoft>
4Disponível em: <https://brooklynworks.brooklaw.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1248&context=blr>
11Disponível em: <https://casetext.com/case/bragg-v-linden-research>