Rafael Duarte*
A estruturação SaaS é o principal modelo de negócios adotado por empreendedores no universo de empresas de tecnologia, segundo levantamentos realizados pela Gartner1 e pela Associação Brasileira de Startups, as quais apuraram ser essa a realidade em níveis global e nacional, respectivamente.2
Trata-se de um modelo – como seu próprio nome indica (software as a service – software como um serviço) – que envolve a disponibilização de soluções tecnológicas por meio da internet. Com isso, o usuário final “não precisa se preocupar em instalar ou atualizar nada, pois o software é executado na nuvem – basta acessá-lo por meio de uma conexão à web”3, o que faz que tudo ocorra de modo mais fluido e rápido.
Sempre que uma startup decide montar o seu negócio tendo um software como proposta de valor, torna-se necessário delimitar as formas de proteção jurídica da empresa na relação com seus usuários. Uma vez que são necessárias contratações em massa, é preciso dotar a empresa de algum instrumento que seja condizente com a Nova Economia e que não exija assinaturas de documentos por escrito com cada um dos licenciados, o que, fatalmente, inviabilizaria o crescimento escalável que muito se almeja numa startup.
É nesse contexto em que surge a figura do EULA, acrônimo representativo da expressão anglófona End-User License Agreement ou, em tradução livre, Contrato de Licença de Usuário Final. Trata-se de um “acordo legalmente vinculativo entre o proprietário de um produto (muitas vezes software) e o usuário final – mais especificamente um contrato entre o licenciador de um produto e o licenciado.”4
O contrato de licenciamento tem como característica distintiva o fato de que, quando o contratante do software faz a “compra”, ele não está, na verdade, adquirindo a propriedade do software. O que ocorre, juridicamente, é o desembolso de valores (fixos ou periódicos) em troca do direito de usar o software, uma vez que a propriedade das aplicações permanece com o seu titular, intitulado licenciante.5
Como forma de simplificar a compreensão, pode-se fazer uma analogia com uma locação; o locatário não é o proprietário da casa e não pode vendê–la a um terceiro. Apesar disso, tem o direito de morar na casa. A titularidade permanece com o locador.6 Trazendo-se para a realidade do licenciamento, o locatário seria o licenciado e o locador/proprietário, o licenciante.
– EULA é sinônimo de Termos de Uso e SLA?
A despeito de ser bastante comum EULA e Termos de Uso serem percebidos como sinônimos, refere-se a existência de algumas distinções entre eles, especialmente em termos de amplitude dos temas que eles abordam.
Os Termos de Uso abrangem uma gama mais extensa de assuntos em seu corpo, contemplando tudo que é relevante na relação entre a empresa, seus serviços e seus usuários (consumidores dos serviços). Pode incluir, assim, propriedade intelectual, direitos dos usuários, política de pagamento, cancelamento e devolução, regras de comportamento, entre outros. Por sua vez, o EULA é um documento um pouco mais limitado no seu escopo; está concentrado na relação de licenciamento, preocupando-se em disciplinar questões que digam respeito ao software e a forma de utilização pelo usuário. Não é, contudo, equivocado tratá-los como expressões intercambiáveis.7
Em relação ao SLA (Service Level Agreement ou Acordo de Nível de Serviço), este não deve ser entendido como sinônimo de EULA, tendo em vista que aquele serve para detalhar para o usuário os serviços que o licenciante irá oferecer e quais serão as métricas adotadas para definir a qualidade dos serviços entregues. Isto é, como o próprio nome indica, a ideia não é regular o relacionamento entre licenciante e licenciado; o foco está na especificação dos serviços e critérios para apurar se estão sendo executados a contento ou não.8
– Por que, então, utilizar um EULA se eu adoto um modelo SaaS?
A utilidade prática de se utilizar o EULA está diretamente atrelada ao seu uso como escudo protetor do licenciante, configurando uma “camada vital de defesa contra violação de direitos autorais, engenharia reversa de software e uso indevido do aplicativo.” 9
Considerando que o software é disponibilizado ao licenciado, este poderá adotar múltiplas iniciativas com ele – nem todas lícitas e bem intencionadas -, sendo instrumental que o licenciante esteja contratualmente protegido para confrontar tais lamentáveis ocorrências.
Além disso, confere-se ao licenciante um importante instrumento para fins de “reivindicar garantias, especificando que o aplicativo é fornecido no estado em que se encontra ou conforme disponível, garantindo que eles não sejam responsabilizados caso determinadas circunstâncias impeçam que o software atenda totalmente aos requisitos.”10
De modo sintético, o documento servirá para detalhar as condições de utilização do software, informando ao usuário de quais práticas eles estão ou não autorizados a adotar, hipóteses de incidência de limitações ou encerramento da relação, reafirmação da titularidade sobre propriedade intelectual, entre outros.11
– Quais as cláusulas necessárias de um EULA?
O primeiro ponto a se esclarecer é que se trata de um documento cujo destinatário final é o usuário; ele é quem deve, deste instrumento, extrair todas as informações necessárias para utilizar o software de modo regular, lícito e com expectativas devidamente ajustadas.
Por isso, a recomendação basilar e aplicável a todo e qualquer EULA – independentemente do segmento de mercado da startup – é a utilização de linguagem direta, clara, precisa e acessível. Como forma de orientar adequadamente os tópicos a serem satisfeitos num EULA, segue abaixo descrição dos itens que devem estar previstos.
- Definições
Reforçando-se o caráter de acessibilidade do EULA, tendo em vista que é comum que seja necessário usar termos técnicos para detalhar os serviços licenciados, a forma de garantir o real entendimento do usuário sobre o que esses termos querem dizer é incluir – sempre que for possível – um tópico específico intitulado “Definições”, para informar ao usuário o significado dessas expressões.
Dessa forma, não apenas o usuário estará recebendo um tratamento transparente quanto ao que está aderindo, como reduzem-se as possibilidades futuras de discussão sobre a clareza do conteúdo do documento, aumentando, assim, a proteção jurídica do licenciante.12
- Identificação do Licenciante:
Por mais que pareça uma preocupação de cunho meramente formal, é fundamental que o documento traga a perfeita individualização do licenciante, contendo a razão social completa da startup, o número de sua inscrição no CNPJ, dados de contato e quaisquer outras informações relevantes para que o usuário tenha plena ciência de com quem está contratando.13 Lembre-se: o foco central sempre deve estar na transparência e clareza para o usuário, destinatário do EULA e a clareza sobre os dados do licenciante é fundamental.
- Detalhamento dos serviços e do software e Limitação de responsabilidade do Licenciante:
Com o intuito de orientar adequadamente as expectativas do usuário, o EULA precisa contemplar um tópico específico para o fim de explicitar, da forma mais detalhada possível, os serviços oferecidos e exatamente o que o usuário pode esperar do seu uso; tanto em termos de funcionalidades disponíveis, quanto de funcionalidades indisponíveis (para evitar quaisquer frustrações).
O licenciante tem o direito de, neste documento, fazer importantes ressalvas acerca da limitação de sua responsabilidade, como, por exemplo, se o software é incompatível com certo dispositivo e a empresa não sabe disso.14 Além disso, deve-se incluir claro destaque ao usuário de que a aplicação nem sempre funcionará perfeitamente, sendo crucial referido disclaimer. 15
Uma previsão recorrente para esse fim é a cláusula de entrega do software “como é” (ou “as it is”, em sua origem anglófona). Serve para comunicar ao usuário de que a aplicação está sendo disponibilizada para uso exatamente com as funcionalidades, aptidões e limitações atuais; logo, cabe ao usuário ajustar suas expectativas ao que está sendo efetivamente oferecido pelo licenciante.16
- Regras de comportamento e restrições de uso:
O licenciado/usuário não é o proprietário do software, como já explicado; ele detém tão somente uma licença, um direito de utilizar dessa aplicação. Com isso em mente, é direito do licenciante impor restrições a esse uso, de modo a evitar que o licenciado pratique atos que possam acarretar danos ao licenciante ou até a terceiros.
Por isso, quando da elaboração do EULA, deve-se adotar uma atenção especial a quais limitações são impostas ao usuário, enfatizando-se as proibições a que o usuário replique o produto, faça engenharia reversa, comercialize-o com terceiros ou o utilize para propósitos ilegais.17
- Causas de rescisão da licença
Diretamente relacionado com o tópico acima, após cientificar o usuário exatamente das possibilidades e das restrições destinadas a ele, eventual comportamento não condizente com as diretrizes transmitidas pelo licenciante submeterão o usuário às sanções previstas no acordo. Dentre elas está, naturalmente, a possibilidade de rescisão da licença.
Como há diferentes níveis de gravidade das práticas empreendidas pelos usuários, cabe prever quais violações – dada sua severidade – são capazes de ensejar a rescisão da licença, notadamente no caso de violação de direitos de propriedade intelectual ou de eventual lesão a direito de outros usuários, por exemplo.18
- Aceitação prévia a atualizações periódicas:
Por último, partindo-se da premissa de que o software é um organismo vivo e que, com vistas a mantê-lo sempre otimizado, o licenciante precisará realizar atualizações e melhoramentos periódicos, o EULA precisa conter previsão expressa de que o usuário declara-se ciente e anui com todas as atualizações que se mostrarem necessárias para a continuidade do acesso. 19
– Posso tornar o EULA facultativo para os meus usuários?
Essa questão enseja a última advertência da presente publicação: o EULA é um documento de observância e aplicação obrigatórias em todo e qualquer SaaS, como instrumento essencial de proteção no relacionamento de licenciantes com seus usuários. Lembre-se: o conteúdo do acordo só pode ser considerado verdadeiramente válido e vinculante para as partes caso tenha sido obtido o consenso mútuo.
Sempre que a aderência ao EULA for opcional, o cumprimento de seu conteúdo também o será e, portanto, o usuário poderá recusar a se submeter a disposições que não lhe pareçam interessantes. Dessa forma, deve-se estruturar a dinâmica de download e instalação do software de modo a garantir que o licenciado só comece a efetivamente fazer uso da aplicação após a colheita de seu livre e claro consentimento (ao clicar em “Eu concordo”).20
Para a elaboração de um EULA com todos esses requisitos, o acompanhamento de consultoria jurídica especializada em empresas de base tecnológica é fundamental e pode fazer toda a diferença na proteção dos direitos da sua startup. A utilização de templates padronizados tende a falhar na especificação de itens essenciais ao seu modelo de negócios, cautela essa que um jurídico com experiência no ramo poderá oferecer, ao elaborar um documento que atende a todas as particularidades do seu negócio.
Para maiores informações e publicações relacionadas com startups, empresas de base tecnológica e studios de games, fique conectado no site e nas redes sociais da Caputo Advogados.
1 “A startup SaaS (Software as a Service) é, sem dúvida, uma das mais expressivas delas: de acordo com um levantamento recente da Gartner, a modalidade responde por quase dois terços de um mercado que faturou perto de US$4 trilhões em 2019.” (RIBEIRO, Renato. Conheça os benefícios de ter uma Startup SaaS e como escalar a sua empresa! iugu, 2020. Disponível em: https://www.iugu.com/blog/startup-saas. Acesso em: 08 jan. 2023).
2 “De acordo com o Mapeamento do Ecossistema Brasileiro de Startups, realizado pela Associação Brasileira de Startups (Abstartups) durante os meses de agosto e setembro de 2021, o SaaS é a forma mais popular entre as startups brasileiras de entregar seus produtos ou serviços para o público. Com base em uma amostra de 2.500 startups de todo o Brasil, o mapeamento identificou que 41% adotam o software como serviço como modelo de negócio.” (VIANNA, Bernardo. Software como serviço é o principal modelo de negócios das startups no país. Insper, 2022. Disponível em: https://www.insper.edu.br/noticias/software-como-servico-e-o-principal-modelo-de-negocio-das-startups-no-pais/. Acesso em: 08 jan. 2023).
3 VIANNA, Bernardo. Ibid. Acesso em: 08 jan. 2023.
4 O que é um EULA e como gerar um? iubenda, 2020. Disponível em: https://www.iubenda.com/pt-br/help/104970-o-que-e-um-eula-e-como-gerar-um. Acesso em: 04 jan. 2023.
5 O que é um acordo de licença de usuário final (EULA)? Servicenow, 2022. Disponível em: https://www.servicenow.com/br/products/it-asset-management/what-is-eula.html. Acesso em: 04 jan. 2023.
6 “Think of it like a rental. A tenant does not own the house, nor can they sell it to someone else. However, they have the right (a license) to live in it. Legal ownership remains with the landlord. The same is true with a EULA. The purchaser has the license to use the software, but the ownership rights stay with you.” (KOMNENIC, Masha. What Is a EULA and Do You Need One? Termly, 2022. Disponível em: https://termly.io/resources/articles/what-is-eula/. Acesso em: 04 jan. 2023).
7 O que é um EULA e como gerar um? iubenda, 2020. Disponível em: https://www.iubenda.com/pt-br/help/104970-o-que-e-um-eula-e-como-gerar-um. Acesso em: 04 jan. 2023.
8 “Software EULAs are sometimes confused with Terms of Service (TOS) and Service-Level Agreements (SLAs). A ToS specifies what rules an IT service customer must follow in order to continue using the service. In contrast, an SLA specifies what services the provider will supply and how they will determine high quality for their service delivery.” (ROUSE, Margaret. End-User License Agreement (EULA). Techopedia, 2022. Disponível em: https://www.techopedia.com/definition/4272/end-user-license-agreement-eula. Acesso em: 04 jan. 2023).
9 O que é um acordo de licença de usuário final (EULA)? Servicenow, 2022. Disponível em: https://www.servicenow.com/br/products/it-asset-management/what-is-eula.html. Acesso em: 04 jan. 2023.
10 O que é um acordo de licença de usuário final (EULA)? Servicenow, 2022. Disponível em: https://www.servicenow.com/br/products/it-asset-management/what-is-eula.html. Acesso em: 04 jan. 2023.
11 O que é um EULA e como gerar um? iubenda, 2020. Disponível em: https://www.iubenda.com/pt-br/help/104970-o-que-e-um-eula-e-como-gerar-um. Acesso em: 04 jan. 2023.
12 O que é um acordo de licença de usuário final (EULA)? Servicenow, 2022. Disponível em: https://www.servicenow.com/br/products/it-asset-management/what-is-eula.html. Acesso em: 04 jan. 2023.
13 O que é um acordo de licença de usuário final (EULA)? Servicenow, 2022. Disponível em: https://www.servicenow.com/br/products/it-asset-management/what-is-eula.html. Acesso em: 04 jan. 2023.
14 “Limitations of liability is one of your EULA’s most important clauses. You want to clarify that you are not to be held liable for any damages resulting from your software. Be clear, concise, and limit your liability from harm that may befall the user. For example, if your software is incompatible with a certain kind of device and your company is unaware of it.” (KOMNENIC, Masha. What Is a EULA and Do You Need One? Termly, 2022. Disponível em: https://termly.io/resources/articles/what-is-eula/. Acesso em: 04 jan. 2023).
15 “Most EULAs only permit end-users to use the software for personal purposes. However, some EULAs—such as those for design and illustration software—permit end-users to use the application for commercial purposes.” (WHAT is an end-user license agreement (EULA)? Ironclad, 2022. Disponível em: https://ironcladapp.com/journal/contracts/eula/. Acesso em: 04 jan. 2023).
16 “Essentially, this clause exists to remind end-users to take the product “as is” and control their expectations. Be firm about making no assertions or promises to the end-user about the application other than how it meets basic legal standards.” (WHAT is an end-user license agreement (EULA)? Ironclad, 2022. Disponível em: https://ironcladapp.com/journal/contracts/eula/. Acesso em: 04 jan. 2023).
17 “This clause will limit any liability an end-user can recover as damages incurred due to using your app or software. This limitation is particularly important with new products because some bugs or errors in manufacturing or design may not be evident until the product gets used.” (KOMNENIC, Masha. What Is a EULA and Do You Need One? Termly, 2022. Disponível em: https://termly.io/resources/articles/what-is-eula/. Acesso em: 04 jan. 2023).
18 “This clause reserves the right of the software provider to terminate the license. For example, a user employing the software for a use prohibited in the “restrictions of use” section can give rise to grounds for termination of the license.” (KOMNENIC, Masha. What Is a EULA and Do You Need One? Termly, 2022. Disponível em: https://termly.io/resources/articles/what-is-eula/. Acesso em: 04 jan. 2023).
19 “A software or app creator can choose to provide updates. If so, you can include a clause informing the user that the software will update automatically to optimize programming or fix any bugs/glitches.” (KOMNENIC, Masha. What Is a EULA and Do You Need One? Termly, 2022. Disponível em: https://termly.io/resources/articles/what-is-eula/. Acesso em: 04 jan. 2023).
20 “A EULA is not the same as proof of purchase or a warranty. When a consumer agrees to the specified terms of an EULA, the consumer is actually agreeing to license conditions under which the software can be used. After doing so, the consumer can move forward with full product installation and use.” (ROUSE, Margaret. End-User License Agreement (EULA). Techopedia, 2022. Disponível em: https://www.techopedia.com/definition/4272/end-user-license-agreement-eula. Acesso em: 04 jan. 2023).
*Rafael Duarte – Advogado, sócio do escritório Caputo Advogados, com atuação especializada em Startups, Studios de Games e Empresas de Base Tecnológica. Pós-graduando em Direito Digital e Proteção de Dados; Pós-graduado em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul; Pós-graduado em Direito Negocial Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito; Pós-Graduado em Direito Imobiliário pela Faculdade Legale/SP; Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale/SP; Mentor em programas de empreendedorismo e desenvolvimento de negócios inovadores, tais como InovAtiva Brasil, START (SEBRAE), entre outros; Diretor da Associação Gaúcha de Direito Imobiliário Empresarial (AGADIE); Membro da Comissão Direito Imobiliário da OAB/RS e Membro da Comissão de Direito Sucessório do IBDFAM/RS.