É possível constituir sociedade empresária entre cônjuges?

Sociedade entre cônjuges

Sumário

Por Rafael Duarte*

Uma dúvida muito comum se refere à possibilidade de pessoas casadas serem sócias entre si ou, conjuntamente, constituírem uma sociedade com terceiros. A sociedade entre cônjuges é uma pretensão não apenas comum, como bastante compreensível, pois, havendo vínculo de afetividade e confiança mútuos, a vontade de ter o cônjuge como parceiro empresarial é algo totalmente legítimo. 

Entretanto, é preciso esclarecer que, para além de eventuais reflexões acerca da conveniência de se misturar o ambiente residencial com a seara empresarial da vida dos consortes, há restrições legais muito relevantes e que, logicamente, precisam ser de conhecimento dos empreendedores, inclusive no processo de validação do seu negócio e da composição da equipe. Sendo assim, na publicação de hoje, vamos analisar a origem do tema na legislação brasileira, as modificações ocasionadas com o tempo e as regras atualmente vigentes.

 

EVOLUÇÃO HISTÓRICA DA CONSTITUIÇÃO DE SOCIEDADES ENTRE CÔNJUGES

O primeiro momento histórico a ser destacado é a decisão tomada pela Junta Comercial do Rio de Janeiro (então Distrito Federal), ao recusar o registro de uma sociedade mercantil composta por marido e mulher na condição de sócios. À época, a posição era de rechaçar a constituição de sociedades entre consortes casados pelo regime da comunhão universal (regime legal à época1), sob o fundamento de que poderia gerar confusão patrimonial entre os nubentes2.

Ocorre que, como forma de ampliar o número de estruturas societárias e fomentar iniciativas empresariais, referido entendimento foi alterado, de modo que as Juntas Comerciais, visando a evitar debates jurídicos e por não haver, na lei, nenhum impedimento expresso, passaram a admitir o registro de sociedades entre cônjuges, independentemente do regime matrimonial3

Além disso, convém mencionar que já era esse o entendimento do Supremo Tribunal Federal, a contar do julgamento do Recurso Extraordinário nº 76.953/SP (datado de 1973)4, posteriormente reafirmado pelo Recurso Extraordinário nº 108.728-5 (datado de 1989)5 . Em ambas as ocasiões, a Corte Suprema concluiu que não seria legítimo presumir intuito fraudulento na constituição de sociedade entre cônjuges (premissa de presunção de boa-fé6), tendo o condão, portanto, de afastar eventual proibição como regra.

 

MUDANÇA DE TRATAMENTO A CONTAR DO CÓDIGO CIVIL DE 2002 

Contrariando o que já restava consolidado na jurisprudência e no entendimento das Juntas Comerciais em todo o território nacional (configurando retrocesso na visão de parte da doutrina7), o art. 977 do Código Civil8 vigente contempla fortes restrições à constituição de sociedade entre casados. Com base nesse dispositivo, passou a ser vedada a constituição de sociedade entre cônjuges casados entre si pelos regimes da comunhão universal ou da separação obrigatória. Por outro lado, era permitida a sociedade composta por pessoas casadas pelos regimes da: i) comunhão parcial de bens; ii) participação final nos aquestos; e iii) separação convencional de bens.

A ideia central da proibição é bastante simples: obstar que, como resultado da constituição da sociedade empresarial, haja “confusão patrimonial conjugal9, bem como que terceiros que com eles venham a contratar sejam prejudicados. 

Uma ressalva bastante importante foi feita pelo STJ, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.058.165/RS, ao estabelecer que referida limitação não se aplica às sociedades por ações, estando restrita às sociedades contratuais10, mas atingirá tanto sociedades simples (ex.: sociedade entre médicos), quanto sociedades empresárias (ex.: estabelecimento de comércio de roupas)11. Isto é, caso a pretensão seja a participação em sociedades anônimas (de capital aberto ou fechado), referida restrição legal não será aplicável.

É crucial fazer um esclarecimento acerca de eventual confusão interpretativa por conta da redação do art. 977 do CC. Esse dispositivo poderia dar a entender que a pessoa casada pelo regime da comunhão universal de bens ou no da separação obrigatória não poderia contratar sociedade com terceiros (mesmo que não seja sócio de seu consorte). Ocorre que isso não corresponde à melhor interpretação, segundo bem leciona a doutrina, ao aduzir que a restrição só incide sobre a “sociedade formada por apenas os cônjuges casados nos regimes da comunhão universal de bens e separação obrigatória entre si e por ambos com terceiros em uma mesma sociedade.”12 Fora disso, não se aplica; o que a lei não proíbe está autorizado.

 

QUAL É O ENTENDIMENTO ATUAL?

Apesar de várias críticas muito sólidas desenvolvidas pela doutrina especializada, é preciso esclarecer que o texto legal é claro ao estabelecer ditas proibições, razão pela qual resta claro que a restrição ao direito de constituição de sociedade permanece aplicável.

 Informa-se que o Manual de Registro de Sociedade Limitada, elaborado pelo Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração versa sobre o tema no seu item 3.2., incluindo o tema na lista de impedimentos para ser sócio, estabelecendo, como exemplo de pessoa impedida de ser sócia de sociedade limitada, os “cônjuges casados em regime de comunhão universal de bens ou de separação obrigatória”13, os quais não poderão contratar sociedade, entre si ou com terceiros.

Como resultado dessa regra, caso haja interesse efetivo de pessoas casadas pelo regime da comunhão universal de bens ou da separação obrigatória de constituírem sociedade entre si, a única alternativa existente será a propositura de uma ação de alteração de regime de bens, prevista no art. 1.639, § 2º, do Código Civil14, bem como no art. 734 do Código de Processo Civil15

Todavia, isso só será possível se: (i) não houver violação de norma de ordem pública; (ii) forem respeitados interesses de terceiros; bem como (iii) seja realizada a prévia partilha dos bens que integrem o patrimônio comum do casal16. Isto é, lamentavelmente constata-se que os entraves são realmente muito significativos em tais casos, exigindo reflexões do casal para definirem qual o caminho a ser trilhado.

Todos esses fatores reforçam a importância da consultoria jurídica especializada em startups e societário, para o fim de que o casal esteja ciente de todas essas minúcias previstas na legislação e que podem impactar na concretização do projeto por eles desenvolvido. Com a apresentação da ideia empresarial e da composição do quadro societário projetado, todas as dúvidas dos founders poderão ser sanadas e, assim, a criação da startup será realizada da forma mais segura possível.

Para maiores informações sobre Direito Societário e Startups, acompanhe nossas postagens e aguardamos comentários e dúvidas!

 


1Comunhão universal de bens: Até 1977, era o regime legal, adotado por praticamente todos os casais. Nele, todos os bens adquiridos antes ou durante a união são passíveis de partilha em um futuro divórcio.” (ENTENDA os diferentes tipos de regime de bens existentes no Brasil. Globo News, 2014. Disponível em: https://g1.globo.com/globo-news/noticia/2014/08/entenda-os-diferentes-tipos-de-regime-de-bens-existentes-no-brasil.html. Acesso em: 07 jul. 2022).

2MAMEDE, Gladston. Direito societário: sociedades simples e empresárias. 10. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2018. p. 50.

3MAMEDE, Gladston. Direito societário: sociedades simples e empresárias. 10. ed. rev. e atual. – São Paulo: Atlas, 2018. p. 50.

4“Sociedade entre cônjuge. Não merece ser considerada nula pleno jure, posto que passa ela a ser anulável segundo as circunstâncias que levaram a sua constituição. Doutrina. Jurisprudência, inclusive do Supremo Tribunal. II – Recurso extraordinário, conhecido pelo dissídio e provido. (RE 76953 / SP; DJ 27/11/1973; Rel. Min. Thompson Flores).” (APPENDINO, Fábio. Sociedade entre cônjuges. Migalhas, 2007. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/45758/sociedade-entre-conjuges. Acesso em: 10 mar. 2021.

5“Reputa-se licita a sociedade entre cônjuges, máxime após o Estatuto da Mulher Casada. […] Hipótese em que não há prova reconhecida nas decisões das instâncias ordinárias de a sociedade haver sido criada objetivando causa prejuízo à Fazenda, nem tampouco restou demonstrado que as obrigações tributarias resultaram de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou dos estatutos, por qualquer dos sócios.” GOULART, Leandro Henrique Simões; QUIRINO, Matheus Adolfo Gomes. Sociedade conjugal: interpretação do artigo 977 do Código Civil. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, ed. 20. Disponível em: https://revistas.newtonpaiva.br/redcunp/d20-22-sociedade-conjugal-interpretacao-do-artigo-977-do-codigo-civil/. Acesso em: 10 mar. 2021.

6 “[…] 1.3. A presunção de boa-fé é princípio geral de direito universalmente aceito, sendo milenar parêmia: a boa-fé se presume; a má-fé se prova. […]” (BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Tema Repetitivo n. 243. STJ, 2015. Disponível em: STJ – Precedentes Qualificados. Acesso em: 07 jul. 2022).

7“Ocorre que o Código Civil de 2002 (clique aqui) – na contramão da evolução doutrinária e jurisprudencial – restringiu as hipóteses em que marido e mulher podem ser sócios.” (APPENDINO, Fábio. Sociedade entre cônjuges. Migalhas, 2007. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/45758/sociedade-entre-conjuges. Acesso em: 10 mar. 2021).

8Código Civil. Art. 977. Faculta-se aos cônjuges contratar sociedade, entre si ou com terceiros, desde que não tenham casado no regime da comunhão universal de bens, ou no da separação obrigatória.

9JÚNIOR, Franco Mautone. Sociedade empresária entre cônjuges e o novo Código Civil – breve estudo sob a ótica constitucional. Migalhas, 2009. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/90319/sociedade-empresaria-entre-conjuges-e-o-novo-codigo-civil—breve-estudo-sob-a-otica-constitucional. Acesso em: 10 mar. 2021.

10“[…] aplica-se a todas as sociedades cuja natureza seja contratual, ou seja, aos tipos societários regulados no C. Civil, exceção feita às sociedades em comandita por ações, as quais são regidas pelas normas das sociedades anônimas, sem prejuízo das modificações constantes dos artigos n°. 1.090 a 1.092 do C. Civil, e às próprias sociedades anônimas, reguladas por lei especial, a teor dos artigos n°. 1.088 e 1.089.” (MOREIRA FILHO, Carlos Augusto. Sociedade entre cônjuges. Migalhas, 2007. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/48710/sociedade-entre-conjuges. Acesso em: 10 mar. 2021).

11“[…] As restrições previstas no art. 977 do CC/02 impossibilitam que os cônjuges casados sob os regimes de bens ali previstos contratem entre si tanto sociedades empresárias quanto sociedades simples.” (BRASIL, Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1.058.165/RS. Relatora: Ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma. Brasília. DJ: 14/04/2009. Disponível em: https://processo.stj.jus.br/processo/revista/documento/mediado/?componente=ATC&sequencial=4767170&num_registro=200801069255&data=20090821&tipo=5&formato=PDF. Acesso em: 10 mar. 2021).

12GOULART, Leandro Henrique Simões; QUIRINO, Matheus Adolfo Gomes. Sociedade conjugal: interpretação do artigo 977 do Código Civil. Revista Eletrônica de Direito do Centro Universitário Newton Paiva, ed. 20. Disponível em: https://revistas.newtonpaiva.br/redcunp/d20-22-sociedade-conjugal-interpretacao-do-artigo-977-do-codigo-civil/. Acesso em: 10 mar. 2021.

13DEPARTAMENTO Nacional de Registro Empresarial e Integração. Manual de Registro de Sociedade Limitada. Ministério da Economia, 2022. p. 38. Disponível em: https://www.gov.br/economia/pt-br/assuntos/drei/legislacao/arquivos/legislacoes-federais/IN812020AnexoIVManualdeLTDAalteradopelaIN55de2021eIN112de2022novondice24jan22.pdf. Acesso em: 07 jul. 2022.

14Código Civil. Art. 1.639. […] § 2º É admissível alteração do regime de bens, mediante autorização judicial em pedido motivado de ambos os cônjuges, apurada a procedência das razões invocadas e ressalvados os direitos de terceiros.

15Código de Processo Civil. Art. 734. A alteração do regime de bens do casamento, observados os requisitos legais, poderá ser requerida, motivadamente, em petição assinada por ambos os cônjuges, na qual serão expostas as razões que justificam a alteração, ressalvados os direitos de terceiros.

16“É possível mudar o regime de bens do casamento, de comunhão parcial para separação total, e promover a partilha do patrimônio adquirido no regime antigo mesmo permanecendo casado.” (ALTERAÇÃO de regime de bens e partilha do patrimônio podem ser feitas durante casamento. Migalhas, 2015. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/228005/alteracao-de-regime-de-bens-e-partilha-do-patrimonio-podem-ser-feitas-durante-casamento. Acesso em: 16 mar. 2021).

 


*Rafael Duarte, Sócio do escritório Caputo Advogados, com atuação especializada em Empresas de Base Tecnológica e Startups. Pós-graduando em Direito Digital e Proteção de Dados; Pós-graduado em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul; Pós-graduado em Direito Negocial Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito; Pós-Graduado Direito Imobiliário pela Faculdade Legale/SP; Pós-graduado em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale/SP; Mentor em programas de empreendedorismo e desenvolvimento de negócios inovadores, tais como Inovativa Brasil, entre outros; Membro da Comissão Direito Imobiliário da OAB/RS; Membro da Comissão de Direito Sucessório do IBDFAM/RS.

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