Reajuste do valor da locação após anos sem qualquer atualização: Pode o locador promover o reajuste nessas condições?

Sumário

No artigo de hoje, o foco será o julgamento do Recurso Especial nº 1.803.278/PR, proferido pela 3ª Turma do STJ, que contou com a relatoria do Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva. O cerne deste precedente da Corte Superior foi a análise da (im)possibilidade de o locador exercer o reajuste anual do valor da locação pelo indexador de mercado previsto no contrato (usualmente, IGP-M), mesmo após vários anos sem o fazer.

Um ponto introdutório de grande relevância passa pela necessária distinção entre reajuste e revisão da locação, figuras jurídicas igualmente tratadas pela Lei do Inquilinato (Lei nº 8.245/1991).

Primeiramente, quanto ao reajuste, é preciso informar que às partes é admitido que estipulem critérios de reajuste, bem como lhes é conferida a possibilidade de, consensualmente, fixarem novo valor para o aluguel ou inserir e modificar a cláusula de reajuste. A finalidade do reajuste é reestabelecer o valor da moeda e, portanto, do valor da locação convencionada, visto que referido montante sofre a incidência da inflação. Logo, para reestabelecer o equilíbrio, usa-se o indexador fixado em contrato para a sua atualização.

Quanto à periodicidade do reajuste, não obstante a Lei do Inquilinato nada disponha sobre o tema, a questão pressupõe reflexão de outros dispositivos, como evidente desdobramento da Teoria do Diálogo das Fontes1, cunhada pelo jurista alemão Erik Jayme e trazida para o sistema jurídico brasileiro pela professora Claudia Lima Marques, catedrática da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

Com base nessa teoria, todo o sistema jurídico deve ser analisado de modo harmônico e uniforme. Assim, apesar de haver uma lei especial para relações locatícias, quando não houver a resposta para determinada questão jurídica, a solução para tal ponto há de ser buscada no ordenamento jurídico como um todo. Logo, para o reajuste anual, a resposta pode ser colhida do art. 2º, § 1º, da Lei nº 10.192/2001, responsável por introduzir medidas relativas ao Plano Real. Referida dispositivo determina ser “nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano.” 2

Por sua vez, quanto à revisão, o seu cabimento está previsto no art. 19 da Lei do Inquilinato, tendo como principal particularidade não a adoção de indexador oficial de preços; a sua finalidade é ajustar o valor da locação ao preço de mercado, o que pode, muitas vezes, não corresponder ao resultado simples reajuste. Ademais, a revisão é submetida a um requisito temporal: ela só será possível após 3 anos de vigência do contrato ou a contar do último acordo realizado pelas partes.

Explicados esses pontos introdutórios, cumpre relacionar essas informações com o que foi decidido pelo Superior Tribunal de Justiça no julgamento do recurso especial informado na introdução deste artigo. No caso concreto, locador e locatário haviam celebrado contrato de locação não residencial, contemplando, expressamente, a possibilidade de reajuste anual do valor da locação pelo IGP-M. Ocorre que, passados vários anos de vigência do contrato de locação, o locador nunca efetivamente exerceu essa prerrogativa contratual, de modo que o valor do aluguel seguia o mesmo ajustado inicialmente, a despeito dos reflexos relevantes causados pela inflação ao longo desse período.

O locador, então, constatando que o aluguel não mais correspondia à realidade de mercado, optou por encaminhar uma notificação extrajudicial ao locatário, contendo dois principais posicionamentos formais: a) A atualização do valor do aluguel, com o reajuste pelo IGP-M referente ao período decorrido, a ser cobrado a partir do mês subsequente; e b) A cobrança relativa às diferenças ao longo dos últimos 5 anos, entre o valor histórico da locação e o montante resultado do reajuste anual correspondente a cada ano (usando como base o mês de aniversário do contrato).

Irresignado com a cobrança, o locatário não aceitou, especialmente, o pedido “b”, sendo a questão judicializada, chegando-se, ao fim, à apreciação do Superior Tribunal de Justiça. Sintetizando o que foi decidido pelo STJ, cumpre, desde já, informar que o pedido “a” foi acolhido e o pedido “b” foi afastado pelo Tribunal, segundo as razões destacadas abaixo.

O estudo relativo a ambos os pedidos passa pela compreensão da figura da supressio. Trata-se de uma figura parcela da boa-fé objetiva, correspondendo ao “fenômeno da supressão de determinadas faculdades jurídicas pelo decurso do tempo.”3 Ou seja, uma das partes, ao adotar um comportamento omissivo, deixando de exercer determinado direito contratual, não poderá exercê-lo posteriormente, pois, ao fazê-lo, estaria frustrando uma legítima expectativa na sua contraparte de que tal direito não mais seria exercido.

supressio é estudada sempre em conjunto com a surrectio, que nada mais é do que a sua contraposição na relação bilateral de cunho obrigacional. Assim, quando um negociante, por conta de sua inércia, é atingido pela supressio, não mais podendo exercer um direito, essa consequência é contraposta surrectio, que corresponde ao surgimento do direito do outro negociante de seguir executando o contrato nos termos consolidados pela inércia do outro. Diante disso, é possível concluir que tais figuras são duas faces da mesma moeda, sendo, portanto, uma a oposição da outra4.

Contextualizando essas lições com o caso narrado, entendeu o STJ que a postura do locador fez nascer a expectativa no locatário de que os valores já pagos não seriam objeto de reajuste (surrectio em favor do locatário). Contudo, não se pode dizer que essa inércia gerou a expectativa de que ele nunca exercitaria este direito com efeitos pro futuro

Sendo assim, a interpretação adotada pelo STJ foi a solução intermediária entre o que defendia o locador (acolhimento dos pedidos “a” e “b”) e o que postulava o locatário (afastamento dos pedidos “a” e “b)”). A consequência prática será, em casos análogos, a admissão de que o locador exerça o direito de reajuste do valor dos aluguéis futuros, ficando extirpado o direito (supressio) relativo às diferenças dos aluguéis já pagos, como decorrência da inércia protagonizada pelo locador, gerando a legítima expectativa no locatário de que tais locações vencidas haviam sido pagas regularmente.

Por fim, enfatiza-se que entender de modo diverso, para o fim de impedir novos reajustes futuros poderia ensejar um desequilíbrio insuperável do contrato, ao ponto de acarretar enriquecimento indevido do locatário e respectivo empobrecimento do locador, que ficaria “preso” ao contrato até a fluência do prazo contratual. Como se não bastasse, também poderia ser arguida a sua inocuidade, tendo em vista que, como visto na introdução deste artigo, poderia o locador recorrer à revisão da locação (art. 19 da Lei do Inquilinato), ainda que não mais pudesse promover o seu reajuste anual, o que geraria uma interpretação despropositada da legislação.

Dessa forma, pode-se concluir pela importância da assessoria jurídica especializada em relações locatícias, visto que a simples celebração do contrato não exaure a necessária atenção das partes; o acompanhamento próximo para uma regular e salutar execução contratual é igualmente relevante, para o fim de salvaguardar direitos e oportunizar uma relação contratual vantajosa e duradora entre locador e locatário, ensejando ganhos recíprocos.

Para maiores informações sobre Direito Contratual e Direito Imobiliário, acompanhe nossas postagens e aguardamos comentários e dúvidas!

 

*Rafael Duarte é Advogado, responsável pelo setor de Direito Imobiliário do escritório Caputo Assessoria Jurídica; Pós-graduado em Direito Público pela Escola Superior da Magistratura Federal do Rio Grande do Sul; Pós-graduado em Direito Negocial Imobiliário pela Escola Brasileira de Direito; Pós-Graduado Direito Imobiliário pela Faculdade Legale/SP; Pós-graduando em Direito de Família e Sucessões pela Faculdade Legale/SP; Membro da Comissão Direito Imobiliário da OAB/RS; Membro da Comissão de Direito Sucessório do IBDFAM/RS; Atua na área empresarial com ênfase em Startups e empresas do setor imobiliário. www.caputoduarte.com.br

 

1 “A teoria do diálogo das fontes é uma formulação teórica relativamente nova que foi apresentada no ano de 1995, e tem como nome expoente no Brasil Cláudia Lima Marques, professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. […] Dessa forma, a teoria coloca em voga a possibilidade de as leis não serem aplicadas de forma isolada, devendo buscar uma coexistência ou convivência entre essas normas. Será analisado, a priori, o método capaz de conciliar a aplicação de diferentes normas para um único fato, podendo ocorrer ora predominância de uma norma sobre a outra ora a aplicação concomitante de duas ou mais normas.” (MORAES, Carlos Alexandre. A Aplicação da Teoria do Diálogo das Fontes no Direito do Consumidor Brasileiro. Gen Jurídico, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 09 nov. 2020)

2 Lei nº 10.192/2001. Art. 2º É admitida estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano. § 1º É nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano.

3 DUARTE, Ronnie Preuß. Questões Controvertidas no Novo Código Civil. São Paulo: Método, 2004. v. 2. p. 427.

4 “Já a surrectio é o oposto da supressio, pois consiste no nascimento de um direito/obrigação exigível decorrente da continuada e sucessiva prática de certos atos e ações. Conjecturando a situação de que o credor, ao aceitar que o pagamento do contrato ocorresse em lugar ou período diverso do convencionado, por conta da incidência do instituto da surrectio, poderá o devedor estabelecer que o contrato seja, agora, adimplido no novo lugar ou tempo consentido.” (MORAES JÚNIOR, Paulo Henrique de. Breves apontamentos sobre a boa-fé objetiva nas relações contratuais: venire contra factum proprium, supressio, surrectio e tu quoque. Migalhas, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 09 nov. 2020).

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