Por Ana Laura Finati Alves*
Introdução
Os emuladores de videogames têm sido objeto de intenso debate na indústria de jogos eletrônicos há décadas. Essas ferramentas de software permitem que jogos projetados para um console específico sejam jogados em diferentes dispositivos, como computadores pessoais ou smartphones, levantando questões complexas sobre direitos autorais, preservação de jogos e ética no consumo desse tipo de mídia digital.
Mas, afinal, essa ferramenta encontra uma barreira legal de consumo pelo público? É isso que iremos destrinchar no artigo de hoje.
O que são emuladores e como funcionam?
Antes de mergulharmos na questão da legalidade, é crucial entender o que são emuladores e como eles funcionam.
Em essência, um emulador é um software projetado para imitar o comportamento de um sistema de hardware específico. Na indústria dos games, isso significa simular o funcionamento de um console de videogame, permitindo a sua execução em um dispositivo diferente daquele para o qual foi projetado, como um computador.
No mercado atual, temos marcas já consolidadas e disseminadas entre o mundo gamer, tais quais o RetroArch, que possibilita o player reviver os jogos do console NES, SNES e Sega Genesis; o Dolphin, que replica o GameCube e Wii no computador; o DuckStation que permite a compatibilidade com os jogos do PlayStation 1; e muito mais1.
O processo de criação de um emulador envolve, principalmente, engenharia reversa do sistema operacional do console alvo ou, até mesmo, a redefinição dos valores da BIOS (Basic Input/Output System) do dispositivo. Este processo é complexo e requer um profundo conhecimento técnico, pois os fabricantes de consoles raramente divulgam as especificações técnicas detalhadas de seus sistemas.
Para um emulador funcionar, ele precisa de uma cópia digital do jogo original, conhecida como ROM (Read-Only Memory) para jogos de cartucho, ou uma imagem ISO2 para jogos baseados em disco. Estas ROMs ou imagens ISO contêm os dados do jogo original e são essenciais para que o emulador possa executar o jogo.
É importante notar que o desenvolvimento de emuladores muitas vezes ocorre durante o ciclo de vida de um console, começando geralmente por volta do quarto ano após o lançamento do sistema3. Isso se deve ao aumento do poder de processamento dos computadores pessoais, que eventualmente supera o do console emulado, permitindo que os desenvolvedores refinem seus emuladores para um desempenho mais próximo do hardware original.
A legalidade dos emuladores
A questão da legalidade dos emuladores é complexa e muitas vezes mal compreendida. É crucial distinguir entre a legalidade dos emuladores em si e a legalidade das ROMs ou imagens ISO utilizadas na ferramenta.
Emuladores
Do ponto de vista técnico e legal, os emuladores em si, geralmente, não são considerados ilegais. Muitos emuladores são desenvolvidos como projetos de código aberto, sendo distribuídos gratuitamente na internet. O ato de criar um software que imita o funcionamento de outro sistema não viola necessariamente nenhuma lei ou propriedade intelectual, desde que não utilize código proprietário do sistema original.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a legalidade dos emuladores foi estabelecida em um caso judicial emblemático: Sony Computer Entm’t, Inc. v. Connectix Corp., em 20004.
A Corte Americana decidiu no processo que a criação de um emulador, mediante engenharia reversa, era considerado “uso justo” sob a lei de direitos autorais dos EUA, neste caso, se falava de um emulador de PlayStation para o Mac.
Ainda, no início dos anos 2000, tivemos um importante precedente com o embate da Sony Computer Entertainment America Inc. Vs Bleem LLC5.
A batalha legal foi longa e complexa, e, ainda que os tribunais americanos decidiram a favor da Bleem!, reconhecendo que o emulador não violava os direitos de propriedade intelectual da Sony, o processo foi extremamente caro para a desenvolvedora do emulador, acarretando no encerramento de suas operações em 2001, devido a dificuldades financeiras6.
ROMs e imagens ISO
A questão se torna mais complicada quando se trata das ROMs ou imagens ISO dos jogos. A posse e distribuição dessas cópias digitais de jogos são geralmente consideradas ilegais, a menos que o usuário possua uma cópia física legítima do jogo e tenha feito a cópia digital para uso pessoal, o que é permitido sob o princípio de “fair use” ou uso justo.
Outrora, baixar ROMs ou imagens ISO de jogos da internet pode ser considerado pirataria, pois os jogos são produtos protegidos por direitos autorais, e o direito de fazer e distribuir cópias digitais pertence exclusivamente aos detentores dos direitos autorais, sendo geralmente a desenvolvedora ou publisher do jogo.
O debate sobre a preservação de jogos
Um argumento frequentemente usado para defender o uso de emuladores e ROMs é o da preservação histórica dos jogos. Muitos jogos antigos, especialmente aqueles lançados para sistemas que não são mais produzidos, arriscam se tornarem inacessíveis com o passar do tempo. Os defensores da emulação argumentam que esta prática ajuda a preservar uma parte importante da história cultural e tecnológica.
Este argumento ganha força quando se considera que muitas empresas de jogos não têm interesse em relançar todos os seus títulos antigos, especialmente os menos populares ou comercialmente mal-sucedidos. Assim, sem a emulação, esses jogos poderiam ser perdidos para sempre.
No entanto, as empresas de jogos argumentam que, embora a preservação seja importante, ela não justifica a violação de direitos autorais. Como veremos adiante, muitas empresas têm tomado medidas para disponibilizar seus jogos clássicos em formatos diversos, argumentando que estas seriam as formas legais e apropriadas de preservar e acessar jogos antigos.
O impacto na indústria de jogos
A emulação tem tido um impacto significativo na indústria de jogos desde o seu surgimento. Inicialmente vista como uma ameaça direta ao modelo de negócios das empresas de consoles, a emulação forçou a indústria a repensar suas estratégias.
Tradicionalmente, as fabricantes de consoles operavam em um modelo de negócios onde vendiam o hardware (console) a um preço relativamente baixo e obtinham lucro através da venda de jogos. A emulação ameaçou este modelo ao permitir que os usuários jogassem títulos de console em seus computadores pessoais, reduzindo potencialmente a necessidade de comprar o console.
Além disso, o ponto mais replicado em suas defesas, era, justamente, a facilidade de distribuir e baixar ROMs ilegalmente, o que levantou preocupações sobre pirataria e perda de receita.
No entanto, a emulação também teve alguns efeitos positivos na indústria. Ela demonstrou uma demanda clara por jogos retrôs e acesso a títulos clássicos, levando muitas empresas a explorarem formas de monetizar seu catálogo de jogos antigos. Isso resultou em uma série de iniciativas, incluindo:
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- Serviços de assinatura: Plataformas como o Nintendo Switch Online, que oferece acesso a uma biblioteca de jogos clássicos.
- Consoles “mini”: Versões em miniatura de consoles clássicos pré-carregados com uma seleção de jogos populares. O PlayStation Classic, por exemplo, utiliza a emulação, usando o emulador de código aberto PCSX.
- Relançamentos digitais: Disponibilização de jogos clássicos em lojas digitais modernas, muitas vezes com melhorias gráficas ou de jogabilidade.
- Retrocompatibilidade: Consoles mais recentes, como o Xbox Series X/S, oferecem ampla compatibilidade com jogos de gerações anteriores.
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Ponto de vista favorável
A partir disso, se levanta vários argumentos em favor do uso e criação de emuladores, sendo um dos principais, o papel crucial desempenhado pela emulação na preservação de jogos que, de outra forma, poderiam ser perdidos para sempre.
Muitos jogos antigos, especialmente aqueles lançados para sistemas que não estão mais em produção, arriscam desaparecer à medida que o hardware original se deteriora.
Se falamos de jogos raros, ou que nunca foram lançados em certas regiões, a emulação, tem o papel democratizador de acesso à história dos videogames, ou de tradução do conteúdo, como Mother 37 (jogo da Nintendo que nunca foi lançado oficialmente fora do Japão), permitindo que mais pessoas apreciem e comecem nessa jornada gamer.
Se argumenta, ainda, que a emulação promove educação e inovação tecnológica através do desenvolvimento do seu software, uma vez que o processo de estudo para criar emuladores precisos e eficientes impulsiona a análise de códigos, criações de soluções e modificações, além de ajudar os desenvolvedores a testar suas criações.
Outrossim, paradoxalmente, o emulador pode levar a um aumento nas vendas de jogos, isso ocorre, pois à medida que os jogadores descobrem novos títulos ou franquias através da emulação, eles podem se tornar fãs e comprar lançamentos mais recentes ou remasterizações oficiais dessas séries.
Ponto de vista desfavorável
Por outro lado, os críticos da emulação apresentam algumas preocupações com relação à violação dos direitos autorais dos criadores de jogos, pois a emulação e distribuição de jogos sem autorização, acarretam em uma falta de compensação dos criadores e publishers pelo trabalho desenvolvido, o que pode ser visto como injusto e potencialmente prejudicial à indústria.
Há também a preocupação de que a emulação possa levar à perda de receita para as empresas de jogos, afetando potencialmente o desenvolvimento de novos títulos. Argumentam que se muitas pessoas optarem por jogar versões emuladas gratuitamente em vez de comprar os jogos, isso poderia impactar negativamente os recursos disponíveis para criar novos jogos ou realizar continuações de franquias.
Por fim, há preocupações práticas relacionadas à segurança digital, pois a busca por ROMs pode levar os usuários a sites não confiáveis, aumentando o risco de download de malware ou exposição de dados, ou outras ameaças de segurança cibernética.
Conclusão
Como visto neste artigo, abordamos a licitude dos emuladores, enquanto o uso e distribuição de ROMs e imagens ISO ainda levantam sérias questões legais e éticas.
À medida que a indústria de jogos continua a evoluir, é provável que vejamos novas abordagens para lidar com a demanda por jogos clássicos e a preservação do patrimônio dos games. Independentemente de como termine esta discussão, a emulação continua tendo um impacto significativo no acesso, preservação e consumo de jogos eletrônicos.
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*Ana Laura Finati Alves – Estagiária no Escritório Caputo Duarte Advogados. Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (UFPel); Atuação em projetos de escrita científica com foco em direito trabalhista e empresarial; Estágio nos setores de Recurso Humanos e Trabalhista em escritório de Contabilidade; Estágio em escritório de advocacia nos setores Trabalhista e Empresarial; Estágio no Caputo Duarte Advogados, assessoria empresarial especializada em startups e empresas de base tecnológica.
Referências
1RAFAEL, Diego. Emulador de video games – Os clássicos podem ser revividos! Confira abaixo os melhores e baixe todos! Utopia Games, 2024. Disponível em: https://utopiagames.tec.br/emulador-de-video-games-os-classicos-podem-ser-revividos-confira-abaixo-os-melhores-e-baixe-todos/. Acesso 30 ago de 2024.
2“A imagem ISO é um arquivo que copia e reproduz fielmente um sistema de arquivos ou mídia óptica, como CDs, DVDs ou Blu-rays. Uma imagem ISO contém todos os dados, estruturas de diretórios e informações de boot de maneira precisa, gerando uma réplica exata do conteúdo original”. Disponível em: https://www.infortrend.com.br/post/imagem-iso. Acesso em 29 ago 2024.
3NOGUEIRA, Pablo. Hardware, 2022. Disponível em: https://www.hardware.com.br/artigos/o-que-sao-e-como-funcionam-os-emuladores-de-videogames/. Acesso em 29 ago 2024.
4Disponível em: https://www.copyright.gov/fair-use/summaries/sony-connectix-9thcir2000.pdf. Acesso em 30 ago 2024.
5Disponível em: https://www.copyright.gov/fair-use/summaries/sonycomputer-bleem-9thcir2000.pdf. Acesso em 30 ago 2024.
6POUSADA, Rogério. BLEEM!: A Revolução do Emulador de PlayStation 1. Nostalgia Games, 2023. Disponível em: https://nostalgiagames.com.br/bleem-a-revolucao-do-emulador-de-playstation-1/ Acesso em 30 ago 2024.
7BENVENUTI, Eduardo Pugliese. A Importância da Emulação no Mundo dos Games: Mini Documentário Sobre Emuladores. YouTube, 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=XUDbvaZBX9w. Acesso em: 29 ago 2024.
OLIVEIRA, Danilo. É ilegal usar emulador e ROMs de jogos antigos?. Olhar Digital, 2024. Disponível em: https://olhardigital.com.br/2024/05/01/games-e-consoles/e-ilegal-usar-emulador-e-roms-de-jogos-antigos/. Acesso em 29 ago 2024
BOAVENTURA, João Pedro. Showmetech, 2023. Disponível em: https://www.showmetech.com.br/emuladores-sao-ilegais-confira/. Acesso em: 29 ago 2024.